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Sandra

A escola nunca fizera um evento como aquele antes. Os alunos estavam empolgados com a ideia de passar a noite toda acordados na escola, ainda mais sem precisar vestir o uniforme. Raramente tinham a chance de exibirem-se uns aos outros. Algumas meninas investiram em decotes e rendas, enquanto os garotos abusavam das marcas e cores de seus armários.

É claro que Sandra não se sentia bem ali. Ela simplesmente não se encaixava, era desajustada. Não tinha roupas da última moda para desfilar, e seu corpo, bem, ela nem sabia como definir seu corpo, imagine exibi-lo por aí. Mas ela sabia que seria pior se faltasse, não daria esse gostinho a eles, não deixaria sua ausência virar tema de risinhos e piadas, mais risinhos e piadas do que o habitual. Foi assim que ela acabou escolhendo usar o macacão Jeans que encontrou no armário da mãe. Fez uma trança nos cabelos e calçou seus recém lavados all stars brancos.

Conforme chegavam, os alunos eram encaminhados para o auditório por inspetores com cara de sono. Era engraçado vê-los ali àquela hora da noite. A ideia de simular um festival de cinema fora da professora de Artes, ela já havia tentado antes, mas só o novo coordenador apoiou a causa, por achar que poderia ser uma boa oportunidade de integrar os alunos novos. Eles precisavam entender que o Ensino Médio não era apenas sobre provas e cobranças, afinal de contas, os alunos eram adolescentes e precisavam explorar sua vida social. No final, as relações e amizades eram o que todos levavam para além dos muros da escola.

Sandra discordava. Tinha certeza de que jamais olharia para a cara de um dos colegas de sala assim que se formassem. Não falaria novamente com nenhum deles, nem que a obrigassem. Mesmo assim, lá estava ela, sentada ao lado de duas outras garotas que conversavam entre si através de mensagens de celular. Sua vontade era de esmagar os aparelhos no chão, só para que parassem de fazer aqueles apitos irritantes e as duas tivessem que ter uma conversa real, olho no olho. Quando e como foi que o contato se perdeu?

O cheiro de pipoca dominava o ambiente, duas inspetoras distribuíam alegremente saquinhos de pipoca aos alunos. Aos poucos o auditório se encheu e os anfitriões da noite subiram ao palco para agradecer a presença de todos e falarem sobre a importância do cinema como forma expressão artística. Definitivamente, coordenadores frustrados não deveriam poder falar em um microfone para um auditório cheio de adolescentes, ele se embaraçava cada vez mais. Olivia tentou fazer valer seu diploma de história da arte, mas não era muito melhor do que ele. E então Sandra se distraiu ao começar a se perguntar se aquilo realmente era arte ou se só mais uma coisa deturpada em produto midiático.

Só voltou a prestar atenção quando as luzes se apagaram e o primeiro filme começou, enchendo a sala com luzes coloridas e uma trilha sonora de suspense. Logo a imagem de uma menina andando de bicicleta em meio à rodovia surgiu na tela. Sandra se ajeitou na poltrona e olhou para o relógio, mas ainda faltavam muitas horas até ela poder sair dali.

Lá pela quarta ou quinta cena do filme, Sandra começou a se distrair, olhando para os lados e observando como cada pessoa reagia ao filme, além de notar quem, assim como ela, não conseguia manter os olhos na tela. Foi então que reparou em Juliana. Três fileiras à frente, duas cadeiras à direita. O perfil da garota era esporadicamente iluminado pelas luzes do filme, sua risada era doce e ela jogava a cabeça e os ombros para trás enquanto ria, era quase imperceptível, a menos que você estivesse prestando atenção. Apesar de não estar olhando diretamente para seu rosto, Sandra se lembrava também que a garota tinha um dente ligeiramente torto que ficava a mostra quando ela sorria, pois ela era daquelas pessoas que sorria com a boca aberta, espontânea e descontraída, o extremo oposto dela mesma. Talvez por isso que suas características lhe fossem tão chamativas.

No meio do filme, a apresentação foi interrompida para um breve intervalo, para que os alunos pudessem ir ao banheiro ou reabastecer seus saquinhos de pipoca. Ela se levantou, apenas para sair de perto de suas irritantes vizinhas que ainda conversavam pelo celular. Deu uma volta pela sala e se sentou um pouco mais para trás, sozinha.

Fechou os olhos, desejando que isso acelerasse o tempo e diminuísse a distância entre ela e a saída. Sentia sono.

– Com licença, esse lugar está ocupado?

A voz doce de Juliana entrou em seus ouvidos com tamanha surpresa que, apesar de abrir a boca, não conseguiu emitir nenhum som, então apenas balançou a cabeça, em uma negativa.

– Que ótimo. Vou ficar por aqui então. Toda aquela luz da primeira fileira já estava me deixando com dor de cabeça. Aqui no escurinho é melhor.

Sentia o cheiro do perfume floral da garota bem perto dela, o sono foi embora com a corrente elétrica que subitamente pareceu percorrer seu corpo e, de repente, ela estava mais desperta e consciente do que antes.

– Pipoca? – Juliana ofereceu.

– Ah, obrigada – aceitou, pegando timidamente um punhado e colocando em suas mãos.

Sandra foi comendo as pipocas da colega uma a uma, saboreando devagar. E feliz por ter algo para fazer e se distrair.

A sessão voltou a rolar e elas ficaram em silêncio, a garota lhe estendeu o pacote novamente, e assim elas foram dividindo aquele momento, grão a grão. Mais de uma vez seus dedos se encontraram dentro do apertado saco de papel. Sandra se arrepiou com o toque áspero dos dedos sujos de sal de Juliana. Ela pediu desculpas, num sussurro, mas a outra apenas riu, balançando a cabeça e levando a mão à boca para lamber as pontas dos dedos. Em seguida passou a mão pela calça jeans e deixou-a ali, pousada sobre sua coxa.

Sandra sentia o calor subindo por seu corpo, aquele canto da sala estava tão abafado! Com um movimento lento, quase ensaiado, se aproximou mais da cadeira ao lado. Mesmo sabendo que aquela noite não passava de uma fantasia, não havia motivos para não aproveitá-la. Uma garota como Juliana jamais olharia para ela em dias comuns, ao menos nunca olhara antes. Enquanto ela reparava na colega desde a sexta série, quando seus corpos começaram a mudar. Notou como Juliana estava mais alta na volta das férias de verão, como se tivesse aproveitado os dias de folga para esticar. Reparou quando as ondulações de seu cabelo foram alisadas e queimadas por uma chapinha. E lembrava-se de quando os colegas começaram a chamá-la apenas de Juli, como se fossem muito íntimos para dizer seu nome todo.

Por algum motivo, Sandra parecia conhecer mais os traços das outras garotas do que os seus próprios. Talvez sua insegurança fosse tão intensa que ela costumava gastar tempo demais reparando e se comparando com outras pessoas. Elas eram como um espelho e devia ser por isso que ela sentia desejá-las. Aquilo era normal, não era? Era o que ela se perguntava.

Teve seus pensamentos interrompidos quando a voz rouca de Juliana chamou seu nome em um sussurro. Ela lhe pedia passagem para se levantar e sair da estreita fileira de cadeiras improvisada. Sandra se encolheu, trazendo as pernas para mais perto de seu assento e ficou olhando enquanto a outra passava, não conseguindo evitar um arrepio no joelho quando suas pernas esbarraram uma na outra.

Dois longos minutos se passaram, ela sabia, pois estivera encarando o relógio em seu pulso. Mesmo sabendo que aquilo era errado, irracional, indecente, se levantou, tentando não fazer barulho, e seguiu pelo mesmo corredor, indo parar na porta do banheiro feminino.

Entrou e tentou não encarar a garota, que se olhava no espelho enquanto retocava o batom vermelho dos lábios. Seus olhares se cruzaram por um segundo, antes que Sandra conseguisse desviar e entrar em uma cabine. Ela estava ainda mais bonita com os lábios pintados!

Sandra esperou alguns segundos, até sentir o rubor de sua face amenizar. Apertou a descarga antes de abrir a porta, como uma tentativa de justificar seu tempo ali, e então saiu para lavar as mãos, aproveitando para jogar um pouco de água fria no rosto. Olhou ao redor pelo reflexo do espelho e, num misto de alívio e frustração, percebeu que estava sozinha.

Rumava para a saída quando a viu parada na última cabine, a sua espera. Juliana pegou em seu braço, sentiu os dedos finos e de unhas compridas da garota se fechando em torno de seu pulso e puxando-a para dentro.

Não houve tempo para palavras ou explicações. Até mesmo a surpresa ficou entalada na garganta ao ser calada com um beijo. Um beijo roubado e aguardado, quente, com um leve gosto de pipoca. Aquele beijo adolescente, que tem um sorriso no meio. O único tipo que Sandra conhecera até ali, em seus meros dezessete anos de vida. Um beijo que não durou tanto quanto podia ter durado. Seu término precoce talvez se devesse à expectativa de poderem se olhar, ou então ao medo de serem pegas ali.

Nenhuma das duas ousou dizer a primeira palavra. Sandra assistiu em câmera lenta enquanto Juliana passava um dedo sobre seus lábios, limpando o batom que havia borrado e depois quando se virou e saiu do banheiro, ainda em silêncio. Sozinha, saiu da cabine e foi até o espelho, apoiou-se na pia e levantou o rosto, tomando coragem de encarar-se e ver que o batom borrado também estava ali, sujando seus lábios e testemunhando o que acabara de acontecer. Mesmo sem querer, passou os dedos, limpando as marcas vermelhas e apagando os vestígios de Juli.

Voltou, com as pernas bambas para seu lugar. As duas ficaram sentadas, lado a lado, dividindo calor e um segredo. Agora a garota estava ainda mais consciente da presença e proximidade da outra, sentindo seu cheiro e vendo seu reflexo com o canto dos olhos. Sandra não era mais capaz de distinguir quem eram os atores que desfilavam na trama da tela, porém achava que seria capaz de distinguir e reconhecer cada traço daquele belo rosto que ainda há pouco estivera tão próximo do seu.

Ela não sabia o que aconteceria na segunda-feira. Voltariam a agir como estranhas? Cada uma em sua pequena tribo? Juliana voltaria a ignorar sua existência? Como em um sonho, era preciso aproveitar aquela noite. Assim que a luz da tela se apagou e os créditos começaram a rolar, lentamente e em letras miúdas, Sandra se levantou e saiu da sala, não foi preciso se virar para saber que estava sendo seguida.

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