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Ajustes

A chuva batia insistentemente na janela, tentando competir com o jazz que ecoava do lado de dentro do café. Olhei, novamente, na esperança de vê-lo chegando, mas não havia ninguém na paisagem cinza e chuvosa daquela terça-feira. Apenas uma porção de carros que passavam apressadamente com seus vidros fechados e embaçados.

Olhei para o relógio em meu pulso, frustrada, e depois me concentrei na fumaça que espiralava da xícara de café com leite que a garçonete acabara de depositar a minha frente. Peguei-a, com as duas mãos, sentindo o calor fazer cócegas em meus dedos. Apreciei o café com todos os sentidos, inalando o aroma antes de finalmente degustá-lo.

Amargo.

Me contorci em uma careta, sentindo o gosto impregnado em minhas papilas e me inclinei para alcançar um sachê de adoçante. O açúcar já fora, há muito, proibido pelos médicos.

Desviei minha atenção para a porta ao ouvir o barulho da sineta que anunciava a entrada e saída de clientes do salão. Uma mulher de meia idade segurava a porta aberta com o pé enquanto chacoalhava seu pequeno guarda-chuva do lado de fora. Ela amassou-o em uma dobra malfeita para que coubesse na sacola de plástico, também molhada, que retirou da bolsa. Movi meus pés, embaixo da cadeira, só para conferir se meu guarda-chuva ainda estava lá.

Bebi todo o café, ainda quente, sentindo o estrago que a temperatura fazia em minha língua. Cansada de esperar, de repente sentia urgência em ir embora.

Assim que baixei a xícara de volta na mesa e me virei para pegar o cachecol, que estava embolado no braço da cadeira, ouvi a irritante sineta, dessa vez seguida de passos firmes em minha direção. Enrolei o tecido em volta do pescoço, concentrada em fazer um nó ao centro, deixando que as pontas caíssem simetricamente sobre a blusa.

– Amália – disse, enquanto puxava a cadeira para se sentar a minha frente.

– Atrasado, como sempre – respondi, olhando teatralmente em direção ao relógio.

– Você viu a chuva que está lá fora?

– Não vi, mas verei em breve, estou indo embora – disse me levantando e retirando o casaco da cadeira para vesti-lo novamente.

– Não, não está – disse, puxando minha mão para me conter.

Senti uma corrente elétrica percorrendo todo o meu corpo e puxei os dedos.

– Me solta – pedi, em um sussurro.

– Olha, me desculpe pelo atraso, mas agora estou aqui, e realmente precisamos conversar.

Revirei os olhos antes de sentar novamente.

– Cinco minutos. É tudo o que você tem.

– Com o temporal que está caindo lá fora? Eu diria que temos a tarde inteira.

Ele se virou, fazendo um sinal para a garçonete e esticou o braço para pegar um cardápio na mesa ao lado. Observei seus olhos correndo as páginas, daquele jeito tão familiar. Assim que a atendente se aproximou, fechou o cardápio e fez o pedido habitual: pão na chapa com requeijão e um expresso duplo. Eu pedi outro café.

Em seguida se levantou, indo ao banheiro. Peguei o celular para conferir as últimas notificações, qualquer coisa para me manter ocupada e não pular em cima dele. Toda a saudade que sentia só havia aumentado ao encontrá-lo. Aparentemente, vê-lo e não poder tocá-lo era ainda pior do que passar quase um ano sem notícias suas.

Assim que voltou, nossos pedidos já estavam na mesa. Observei-o levando a xícara aos lábios, os pelos da barba roçando na beira da porcelana. Desviei o olhar para a janela e tentei me concentrar nas gotas que escorriam pela vidraça.

– Você está diferente – comentei.

– Obrigado. Mudei o corte de cabelo, eu acho. Você também, parece bem.

Sorri, em resposta. Engolindo a enxurrada de palavras que desejavam sair por minha boca.

– Obrigada – me contentei em responder.

– Não tem um jeito fácil de lidarmos com isso, então irei direto ao assunto. É importante para mim.

– E quanto ao que eu quero? E o que é importante para mim? – respondi, falhando em manter a respiração controlada.

– É claro que também importa, esse é o ponto, vim aqui para tentarmos chegar a um acordo. Você me diz o que te incomoda e nós tentamos alterar até que fique confortável, ok? – senti minha pele ruborizando sob seu olhar de pena.

Nada que ele pudesse me oferecer seria confortável, nunca mais. Sentia vontade de gritar, de perguntar o motivo dele se achar superior a mim, de ter nos superado, enquanto eu ainda o desejava desesperadamente.

– Não é uma questão de alterações – disse, me focando em controlar a respiração – é só que eu não quero ter minha vida exposta a milhões de leitores.

– Quem me dera vender milhões, espero que esteja certa – riu – E não é a sua história, é a minha, e a nossa, que se passa no meio dela.

– E as outras estão confortáveis com isso? – Vasculhava meu cérebro atrás de qualquer coisa que pudesse magoá-lo, assim como ele vinha fazendo comigo.

– Não tem nenhuma outra, você sabe. Além do mais, é ficção, apenas me inspirei em alguns elementos reais. Olha, quis te mandar uma cópia do texto antes por consideração, detestaria deixá-la descobrir por conta própria, ao entrar em uma livraria. Mas a verdade, Amália, é que eu publicarei de qualquer forma. O contrato com a editora já está assinado.

– Mesmo que isso custe seu relacionamento com a doce Mariana?

– O que a Mari tem a ver com tudo isso? – perguntou em meio a um suspiro.

Apesar de seu ar descontraído, pude perceber os músculos se contraindo em seus ombros. Melhor assim.

– Bem, ela não sabe o que é ficção ou não. Será que ela poderá ter certeza de alguma coisa depois disso vir a público? Será possível confiar em você novamente? E aquela viagem que fizemos juntos a Monte Verde no inverno, vocês já estavam juntos, não esta

– De que viagem está falando? Isso nunca aconteceu.

– Eu sei. Você também, mas ela não. Acha mesmo que alguém consegue namorar um romancista por muito tempo? Eu fiz essa besteira e veja minha situação agora.

– Amália, você não pode me chantagear, ainda mais com algo tão infundado.

– Arrisque se quiser.

– Que tal se você ler o texto, eu te dou mais uma semana para pensar e…

– Você não pode, não é? Não pode publicar sem minha autorização. Aposto como existe uma cláusula no seu precioso contrato. E você veio até aqui fingindo que sua preocupação é comigo. Se você não precisasse mesmo da minha autorização não se esforçaria tanto, você esquece que eu te conheço… Te conheço muito bem. 

Vi seu último fio de esperança partindo ao meio, finalmente. Ele se ajeitou na cadeira, com os olhos arregalados.

– Você sabe que é importante para mim, é o maior sonho da minha vida – disse em um sussurro rouco. 

Era divertido vê-lo perdendo o controle para variar.

– Então escreva sobre qualquer outra coisa que não sobre mim.

– Não é sobre você, me baseei em alguns dos meus relacionamentos anteriores.

– E eu deveria me sentir melhor por isso? – perguntei, cruzando os braços em frente ao peito.

– Não, claro que não. Você sabe que nossa história foi muito importante, mas só porque nós não demos certo não quer dizer que não possamos ser amigos.

– Não quero ser sua amiga.

– Por favor – disse, abaixando a cabeça e se concentrando em um ponto na mesa entre nós – Preciso que você assine um termo de autorização. Se precisar de mais tempo para pensar, eu entendo. Se quiser que eu faça ajustes, podemos conversar, estou disposto a… negociar.

– Quero que altere o final da história.

– Mas você não aparece no final.

– Exatamente, querido, me deixe voltar para sua vida, me deixe fazer parte dela de novo, e assim terá todo o aval que quiser.

-Amália, seja razoável.

– Estou sendo: ela ou eu?

– Ela!

– Seu precioso livro sendo publicado ou ela?

Ele permaneceu em silêncio.

– Foi o que pensei – ri, levando a xícara aos lábios.

– Por favor.

– Estou apenas começando. Como você disse, temos a tarde toda. Vamos aos ajustes – sorri.

Ele bufou, ajeitando a postura na cadeira.

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