Avançar para o conteúdo
Home » Blog » O colecionador de histórias

O colecionador de histórias

Caio já estava acostumado, não conformado, mas acostumado. Todos os dias fazia tudo sempre igual. Enrolava por até vinte minutos depois do despertador já ter tocado. Se arrastava até o banheiro e deixava que a água corrente em seu corpo terminasse o trabalho de lhe acordar. Depois, meio vestido, mas ainda de pantufas, seguia para a cozinha e ligava a cafeteira. Enquanto ela fazia seu trabalho matinal praticamente sozinha, ele lavava a louça da noite anterior e tentava se livrar dos vestígios que restassem pela casa. Jogava latas de cerveja fora, cheirava o resto de pizza e ponderava se aquilo servia para mais uma refeição ou não.

Toda quinta-feira, suas noites eram reservadas a jogar videogame com os amigos. Faziam diversas competições, às vezes presenciais, mas, quase sempre, online. Era mais fácil interagir com pessoas que se pareciam tanto com ele. Nada mudava seu compromisso semanal. Esse mês, estava em segundo lugar, e pretendia avançar na próxima rodada.

Fora isso, por mais que não fosse grande fã de uma rotina matutina, funcionava melhor para cumprir suas obrigações pela manhã, antes do trabalho, pois sabia que depois seria tragado por oito horas de uma função maçante e repetitiva – dez, se considerasse o trajeto, enlatado junto com outras tantas pessoas dentro de um estreito vagão a caminho de seus trabalhos entediantes e mal remunerados.

Depois de dez horas sentindo-se massacrado, à noite ele não conseguia mais ser produtivo. Só queria beber alguma coisa, jogar e relaxar. Às vezes pedia pizza e ficava assistindo vídeos em seu computador, outras vezes ficava deitado no sofá maratonando séries. E, quase sempre, se masturbava.

Fazia um ano e meio que ele fora contratado para integrar o time de TI de uma empresa de seguros. Em geral o trabalho era fácil, uma vez acostumado ao sistema, não era grande desafio resolver eventuais bugs, a pior parte era lidar com o setor de experiência do usuário, detestava quando precisava atender chamados e responder solicitações dos clientes. Afinal, o que havia de tão difícil em mexer em um computador?

Mas, não havia nada como ser taxado como o “cara do TI”. Tinha vontade de rir de desespero quando alguém aparecia em sua sala para pedir ajuda com seu computador ou então para “dar uma olhadinha” na impressora que misteriosamente parara de funcionar. Ele se sentia como um atendente de telemarketing, perguntando “você já tentou reiniciá-la?”. Sem dúvidas, lidar com pessoas sempre fora a pior parte.

Mas, com aluguel e contas para pagar, desde que brigou com a mãe e resolveu sair de sua casa, ele se submetia a uma série de infortúnios em nome do emprego e, principalmente, do salário. Por isso, repetia a si mesmo que aprender a programar fora a melhor coisa que fizera em sua adolescência. O sonho de crescer e se tornar um escritor estava trancado na gaveta já havia alguns anos. Com o ritmo de vida que vinha levando mal tinha tempo para ler, quem diria colocar suas próprias ideias no papel.

E, também, trabalhando o dia inteiro e sem tempo para viver experiências novas, sentia não ter material – ou tempo – para escrever uma história que pudesse despertar o interesse de alguém, não com tanta coisa boa já produzida no mundo. De que valiam suas histórias quando cada pessoa já estava ocupada escrevendo e vivendo a própria.

Apesar da remuneração não ser tão ruim, a verdade é que mal dava para fechar o mês, foi isso que o incentivou a aceitar um plano B, ou um “bico”, como costumava chamar. De tanto mexer com computadores, tornou-se expert em recuperação de arquivos e, como bom paranoico que era, não fazia nada sem distribuir uma boa dose de backups por aí: sistemas em nuvem e hds externos eram seus melhores amigos.

Por ser conhecido na empresa como o tal “cara do TI”, os colegas também começaram a procurá-lo para resolver problemas em seus dispositivos pessoais. E, já que precisaria trabalhar e socializar com aquelas pessoas após o expediente, resolveu cobrar por isso. Em pouco tempo foi indicado de uma pessoa a outra e conseguiu um volume considerável de clientes.

Em geral, recebia máquinas infestadas de vírus e pedidos desesperados de ajuda, pois sempre havia uma foto ou documento importante demais para ser apagado, por isso, formatar nunca era uma opção. Trabalhando com uma boa margem de sucesso, em geral conseguia recuperar as informações do hd e só depois formatava a máquina, devolvendo-a limpinha, com seus preciosos arquivos intactos. Inconformado com a falta de precaução das pessoas, também começou a fazer uma espécie de consultoria de backups. Fornecia opções de sistemas e locais, e ensinava cada um a criar seus próprios métodos de salvar e proteger arquivos para a posterioridade.

Era de se estranhar, para alguém que se irritava tão facilmente em atender pessoas no dia a dia do trabalho, mas a verdade é que era divertido ver como as pessoas tinham tanto apego a arquivos de alguns kbytes. A quantia de fotos tremidas que as pessoas tratavam como tesouros era um mistério a ser estudado. Mas ele, apaixonado por bancos de dados, se divertia tratando dos arquivos e espalhando cópias de tudo na rede.

Aos poucos, por mais que não quisesse admitir, começou a se interessar pelas pessoas cujos computadores consertava. Havia um código de ética instalado em sua cabeça, e assim, tentava manusear os arquivos sem abri-los. Quase nunca havia a necessidade de abrir um documento ou foto, só precisava garantir que conseguiria recuperar tudo, eram dados, o conteúdo pouco importava. Mas, com tantas noites solitárias em casa, começou a traçar perfis de seus clientes. Alguns gastavam um número inexplicável de gigas apenas para armazenar fotos. Fotos de quê? Animais fofinhos? Comida? Paisagens? Talvez selfies? Foi assim que ele começou a dar uma espiadinha aqui, outra ali, apenas para garantir que estava fazendo um bom trabalho, para que nenhum arquivo lhe escapasse antes da formatação irreversível da máquina.

Mas os fragmentos que os computadores lhe contavam só serviam para lhe despertar ainda mais curiosidade acerca de seus donos. O que uma máquina revela sobre seu usuário? O que um conjunto de arquivos ajuda a entender sobre alguém? Foi assim que começou a pesquisar pelo nome de cada um na internet, era fácil descobrir seus perfis em redes sociais e transitar por praticamente tudo o que houvesse de informação pública compartilhada. A internet e suas redes, era muito fácil pescar um peixe.

Seu primeiro desvio aconteceu por culpa de um artigo acadêmico. O amigo de um rapaz que trabalhava com ele lhe procurou, através de boas recomendações: estava escrevendo sua tese de doutorado e o computador lhe deixou na mão. Ele estava desesperado e daria qualquer coisa para reaver seus arquivos. Combinaram um valor e ele passou em sua casa para deixar o laptop. Caio pediu a já habitual pizza de muçarela com pepperoni e começou o trabalho. O doutorando cometera um erro de principiante ao clicar em um link de um e-mail totalmente suspeito e infestar a máquina de vírus. Ah, a curiosidade humana!

E, por falar em curiosidade, começou a abrir os artigos acadêmicos usados de referência para a tese. Apenas por precaução, para conferir se nada fora corrompido. A tese escrita pela metade já estava repousando seguramente na pasta de recuperados. Um dos textos lhe chamou a atenção, algo sobre os hábitos de consumo das pessoas e uma ousada projeção sobre em quantos anos o comércio físico seria completamente substituído pelas vendas online e marketplaces. Ele levou o artigo para a nova pasta e criou uma cópia em sua própria máquina, para ler com mais calma em outro momento. Não viu nenhum problema naquilo, afinal era um artigo já publicado e acessível. Ele apenas se poupou o trabalho de procurá-lo novamente na internet.

Pouco tempo depois, em uma noite particularmente solitária, estava consertando a máquina de uma das meninas da recepção quando abriu sua pasta de fotos. Foi impossível resistir a tantos álbuns! O que ela tanto guardava ali? Acontece que ele acabou esquecendo de apagar uma ou duas fotos de sua máquina depois de concluir o trabalho no computador dela. Talvez tenham sido mais, o fato é que algumas fotos ficaram ali perdidas em uma pasta de seu próprio computador. E foi assim que suas pequenas transgressões começaram a evoluir.

Organizado como era, criou uma planilha com os dados dos donos das máquinas, as especificações das mesmas e o valor recebido por cada serviço. Depois, um tanto quanto ousadamente, criou pastas e um sistema de categorização para os arquivos que ficavam eventualmente esquecidos em sua máquina, cópias de fragmentos da vida de outras pessoas.

Foi em um sábado que fez seu primeiro exercício. Pegou a foto de um grupo estranho de pessoas e ficou observando por algum tempo. Conhecia apenas a pessoa que tirara a foto, a mesma garota que lhe pagou para ter aquelas fotos de volta. Ficou olhando a foto, pesquisou seu perfil nas redes sociais e tentou imaginar que história aquela foto contava, o que havia para além daquele arquivo de dois mega contrabandeado em seu computador. Abriu um documento novo e ficou encarando a tela em branco à sua frente até começar.

Criar aquela história foi um exercício surpreendentemente prazeroso. Tinha um quê de transgressão misturado com aventura, sem contar a satisfação de sentir seus dedos desenferrujando a cada toque nas teclas. Fazia tempos que não escrevia nada e, de repente, era como se aquela garota estranha lhe trouxesse de volta à vida.

E assim foi avançando, usando o que conhecia daquelas pessoas para criar mundos, situações e personagens. Aos poucos até deixou de se importar com o trabalho investigativo – stalker – na internet. Parecia que quanto menos soubesse da pessoa, melhor sua versão ficava. Ele só precisava de conteúdo, pedaços de uma história real que servissem como gatilho para suas próprias alternativas e finais. Caio gostava de suas versões.

Como não podia deixar de ser, guardava seus textos, bem como as devidas referências, em diversos backups espalhados em seu computador, em sistemas de nuvem gratuitos e pagos. Precaução nunca era exagero, esse era o seu lema.

No final do ano, Alessandra, uma corretora de vendas, lhe procurou, desesperada, pois seu sobrinho derrubara seu computador no chão e, além da tela trincada, agora o dispositivo não queria ligar. Todas suas fotos estavam ali, todo seu material de trabalho, inúmeros arquivos importantes, praticamente toda sua vida pertencia àquela máquina! Ele pensou em recusar o trabalho, pois no final daquela semana entrariam em recesso e ele passaria duas semanas sem precisar encontrar nenhuma das caras semi-conhecidas do trabalho. Mas ela parecia realmente desesperada, então algo nele cedeu.

Como a tela havia estragado, ele passou o hd da moça para outro aparelho e passou algumas horas realizando a extração de arquivos, foi dormir e deixou a máquina trabalhando durante toda a noite. Na manhã seguinte, fez sua cópia pessoal dos arquivos, para mais tarde, e salvou tudo o que seria devolvido para Alessandra em um hd externo, que ela poderia plugar em qualquer máquina para reaver seus tão queridos arquivos: fotos, planilhas, apresentações de slide e muitas músicas pirateadas da internet. Aparentemente, ela ainda frequentava sites de torrent para baixar músicas. Em pouco tempo seria considerada vintage.

Acabou se atrasando para o trabalho porque tomou café da manhã olhando as fotos da última viagem à praia que a moça fizera com três amigas. Talvez uma delas fosse sua prima, pois também aparecia nas fotos de família do último natal.

Chegando na empresa foi direto para sua sala e só pôde encontrá-la no final do dia, quando lhe entregou o pequeno aparelho embrulhado em uma sacola plástica e a velha máquina quebrada. Ela abriu um sorriso enorme e praticamente pulou em seu pescoço, em um abraço desengonçado de agradecimento. Após o que pareceu muito mais tempo do que os de fato seis segundos, ela se afastou, com um sorriso tímido no canto da boca, agradeceu novamente.

– Caio, muitíssimo obrigada! Você salvou a minha vida, tudo que eu tenho está aqui.

– Até que foi fácil, como eu te falei, o que estragou foi a máquina, mas os arquivos estavam intactos. Agora, se você quiser a gente se senta para conversar qualquer dia e eu te explico mais sobre formas de dar mais segurança a seus arquivos.

– Sim, os backups, né? Eu quero sim, por favor. Você está livre na sexta? Podemos conversar aqui depois do trabalho, ou vamos lá no Astor e nos sentamos para bater um papo e você me explica tudo isso um pouco melhor.

Ela estava lhe chamando para ir a um bar depois do expediente? Foi difícil conter a sensação quente que percorreu seu corpo. Alê não era de se jogar fora, ainda mais depois de ver todas aquelas fotos dela dentro de biquinis.

– Claro, como for melhor para você.

– Ótimo, nos encontramos por aqui e então decidimos. Agora deixa eu ir que já estou atrasada para a aula de pilates. Ah, já fiz o depósito do seu pagamento, deve cair na sua conta amanhã, você confere?

– Obrigado.

Ela se inclinou para lhe dar um beijo na bochecha como despedida e saiu animada da sala segurando o notebook como se fosse uma pasta em suas mãos.

Aula de pilates, quintas às 19 horas. Ele sabia, é claro. Viu o contrato de matrícula escaneado entre seus arquivos.

Foi para casa um tanto quanto curioso e aflito com a perspectiva de um encontro no dia seguinte, o último dia antes do recesso de fim de ano. Não que fosse um encontro, é claro.

Porém, para sua extrema decepção, Alê cancelou com ele no dia seguinte, por uma mensagem um tanto quanto vaga. Aquilo incomodou mais do que deveria e ele trabalhou com um humor ácido, contando os minutos para poder ir embora e ficar duas semanas afastado daquele lugar e daquelas pessoas.

*

Após o recesso, seu lema era “Ano novo, vida nova” e passada a mágoa com Alessandra, Caio voltou tranquilo ao trabalho e sua tediosa rotina. Um pouco de descanso lhe fizera bem, as miniférias e a virada do ano na praia com os amigos também. “Amigos” talvez fosse um exagero, ele conhecia apenas os dois ex-colegas de faculdade, Pedro e Diogo. Pedro os convidara para uma festa de réveillon na casa de praia da família no litoral norte. Foram dias agitados, com quinze pessoas na casa. Ele conheceu Laís, com quem passou algumas noites. Mas nada além disso, um amor que não sobreviveu à subida da serra, sentimento que aparentemente era mútuo.

Logo no primeiro dia recebeu um recado de Alessandra pedindo para lhe encontrar e fazendo um convite para almoçarem juntos. Sem motivos para negar, ele foi até o pequeno restaurante por quilo onde costumava gastar todo seu vale refeição e ficou sentado esperando pela moça, que atrasou exatos sete minutos.

Se cumprimentaram com um meio abraço constrangedor e ela lhe desejou um feliz ano novo, ao que ele retribuiu e fez sinal para que ela se sentasse na cadeira a sua frente.

– Olha, Caio. Eu te chamei aqui porque…

– Quer beber alguma coisa? – ele a interrompeu, chamando uma garçonete

– Não, obrigada – ela pareceu não gostar da interrupção – Bem, eu não aguento isso, vou direto ao ponto. Naquele dia em que conversamos, assim que cheguei em casa, peguei o computador de minha irmã emprestado para dar uma conferida nos arquivos, eu estava tão feliz por saber que eu não havia perdido nada… Mas o que havia lá dentro, aquele conteúdo não era meu. Ou seu. Era muita gente, muita gente mesmo, muito mais do que eu gostaria de ter visto. Ah, sim, também tinha algumas coisas minhas ali dentro. Você pode me explicar? Porque eu acho que já entendi, mas eu quero mesmo te dar uma chance, espero estar errada.

Ele arregalou os olhos, depois desviou-os para o teto, pois era impossível continuar encarando-a. Ela ficou parada também, assistindo enquanto ele processava a informação sobre a troca dos backups.

Ele abriu a boca, fechou, abriu de novo e finalmente gaguejou. Parecia não encontrar palavras.

– Alê, eu posso explicar. É só… não é nada – disse, abaixando a cabeça.

– Tem que ser alguma coisa. Você é uma espécie de psicopata? Por que guardar todas aquelas informações sobre as pessoas? Por que ficar com fotos e documentos que não são seus? Isso é roubo, é crime, sei lá! É errado. Eu estou em perigo ou algo assim? Você vai me perseguir ou sequestrar alguém da minha família, porque de repente parece que você sabe demais sobre mim, e eu não sei nada sobre você!

– O que você quer saber?

– O motivo de tudo isso. Isso é… é doentio, Caio!

– Eu escrevo.

– O quê? – ela perguntou ofegante, num quase grito bem agudo.

– Começou por curiosidade, eu deixei um artigo em minha máquina para ler depois, um artigo publicado, disponível na internet, não foi roubo, como você colocou, nem nada. E depois, eu comecei a ficar curioso, ficava tentando imaginar quais eram as outras peças daquele quebra-cabeças que a pessoa me trazia. Sim, porque todos os documentos nos contam algo sobre seu dono, mas o que mais aquela pessoa era? Quem mais? Eu fui me deixando imaginar e então comecei a escrever. Aquilo que você viu, o conteúdo das pastas são apenas inspirações, dali eu tirei personagens que coloquei em situações que me permiti imaginar e viver dentro de minha cabeça. Eu posso te mostrar, tenho uma pasta cheia de rascunhos.

– Você escreve? – ela repetiu com uma voz fria e mecânica, como se apenas parte dela estivesse ali comigo, naquela mesa.

– Sim, posso te mostrar, se você quiser.

– Mas isso é errado também! – ela disse, voltando a me encarar, mas já parecendo um pouco menos perturbada – Você não tem direito de se inspirar ou como queira chamar, no conteúdo de outras pessoas sem autorização. Então ninguém faz ideia de que você copia os arquivos?

– Eu não sei. Eu sinceramente não tenho uma resposta para te dar. Eu só comecei a fazer e é o que eu faço desde então, me distrai. Eu só coleciono, entende?

– Arquivos?

– Histórias, hipóteses, possibilidades. Chame como preferir, não me importa.

Ficaram em silêncio por algum tempo, ambos com o coração disparado e a cabeça fervendo em pensamentos.

– Está errado, Caio, está errado.

Ele se sentiu realmente mal por vê-la tão aflita.

– O que você vai fazer? – finalmente perguntou.

– Eu não sei, sinto que eu preciso contar para alguém, isso tem que parar.

– Olha, por favor, não conta para ninguém, foi bobeira, coisa inocente, de alguém que mora sozinho e estava entediado demais com a própria vida. Mas eu realmente preciso do emprego.

– Eu preciso pensar. Você tem tudo aquilo salvo em outros locais? Ora, que pergunta, é claro que tem! Você tem que prometer que vai deletar tudo e que vai parar. Eu vou pensar e então nós conversamos. Você promete?

– Eu vou parar – concordou.

Desnecessário dizer que eles não comeram, já que não havia tempero capaz de adoçar aquele encontro. Ela se levantou, deixando-o sozinho ali.

Não se encontraram nos dois dias que se seguiram. No terceiro, ele a avistou esperando próximo ao bebedouro que ficava no final de seu corredor. Ela estava estrategicamente posicionada, de forma que ele precisaria passar por ela para ir embora.

– Alessandra – disse, cortês.

– Caio – a moça respondeu, fazendo um aceno com a cabeça.

Por que em alguns momentos é tão difícil encontrar palavras a dizer? Será que é pelo ensurdecedor barulho ecoando dentro de nossas cabeças?

– Podemos conversar? – finalmente perguntou.

– Claro, eu já estou saindo, vou embora de metrô, quer me acompanhar até a estação? – perguntou, afinal sabia que a moça fazia todos os dias o mesmo trajeto que ele.

Entraram e saíram do elevador em silêncio, sem ousarem trocar uma palavra sequer na presença de estranhos. Era curiosa a sensação que percorria e pele dele, tanto quanto o frio no estômago dela. Havia uma conexão, algo agora os unia.

– E então…?

– Eu não sei. Essa história toda tem tirado meu sono! Por mais inocente que seja, ainda me parece errado, entende?

– Entendo.

Ok, não era essa a resposta que ela esperava. Ele nem tentou se explicar, e ela sentiu inveja de sua firmeza.

– Bom, vou perguntar de uma vez e aí você me julga e pronto – ela disse mantendo os olhos fixos no chão à sua frente.

– Quem sou eu para julgar?

– A pessoa mais capacitada, eu diria, já que você tem informações de todo mundo.

Ele riu, gargalhou, na verdade.

– Essa é só uma forma de ver as coisas.

– Nós trabalhamos em uma empresa de seguros, merda! – riu também – e aparentemente ninguém ali está seguro.

– Nós não vendemos senão uma ilusão de segurança. Você, mais do que ninguém, deveria saber.

Ela parou de andar, fazendo-o parar também e virar para encará-la.

– Ok, o que eu queria saber é se você tem informações sobre o Diogo.

– Diogo? Diogo seu chefe?

– O próprio.

– Que tipo de informação? O que você acha que eu faço?

– Me diga você.

– Não muito, não tenho nenhuma cópia oculta dos arquivos dele, se é isso o que você quer saber.

– Hum. tudo bem, obrigada.

– Por quê?

– Nada, esquece que eu perguntei – ela disse e voltou a andar, apressando o passo.

– Ei, espera.

Ele foi atrás dela e segurou em seu braço, fazendo-a parar novamente. E então ela lhe contou. Contou tudo, sobre como o chefe começara a lhe olhar de um jeito diferente, como se ofereceu para “olhar seus números” e ajudá-la nas vendas. As insinuações sobre o cumprimento de metas e possíveis bônus. Até que as coisas evoluíram para beijos melados em sua bochecha para cumprimentá-la, uma mão em seu ombro quando estava sentada e, finalmente, uma apalpada em sua coxa durante a reunião da semana anterior. E, por fim, disse que sabia que ela não era seu primeiro e muito menos seu último alvo.

Ela contou tudo muito séria, era visível seu constrangimento, e Caio sentiu um incômodo enorme em vê-la em tal situação. Como era difícil lidar com garotas.

– Acho que podemos trabalho juntos – disse.

– O quê?

– Eu te ajudo a pegar ele. O cara não pode fazer o que quiser com você, é abuso de poder.

E, com um sorriso de cumplicidade, o pacto foi selado. O plano na verdade foi muito simples. Caio o flagraria e Alessandra teria o prazer de expô-lo perante seus superiores. Ele só precisou criar uma conta de e-mail falsa, se passando por alguém e lhe mandar uma mensagem infestada por malwares. Brincadeira de criança: um link com um suposto vídeo picante tendo como protagonista uma atriz famosa. É claro que ele caiu. E então Alê fez a recomendação dos serviços de Caio, aquele rapaz do TI que usava óculos. Em três dias e o computador já estava em suas mãos. Ele fez uma cópia completa de seus arquivos, só por garantia, mas foi muito fácil de achar material comprometedor ali. Fácil até demais.

O cara tinha uma pasta só com fotos e vídeos dele com outras funcionárias. Caio conseguiu reconhecer vários rostos ali. Algumas fotos sequer mostravam suas faces, mas era o suficiente para qualquer um entender.

O bônus foi uma planilha um tanto quanto pervertida onde o cara guardava informações sobre as mulheres e seus encontros. Havia uma sessão só para classificar e ranquear as garotas. Trabalho minucioso, com tudo separado por cores, marcadores e legendas. Ele ficou feliz por saber que o nome de Alê nunca precisaria ocupar uma posição ali.

No dia seguinte, os dois saíram para almoçar juntos e ele lhe explicou tudo o que encontrara. Ela variou entre nojo, raiva e uma série de palavrões que ele nunca ouvira uma boca feminina proferir antes. Ela era boa naquilo.

Trabalhando juntos, Caio sabia que seu segredo estaria à salvo. Ela demorou alguns dias para tomar uma decisão, pensou em chantagear Diogo para que saísse de seu pé, mas empurrá-lo até a próxima vítima não era algo que ela considerasse solução. Então decidiu entregá-lo. Solicitou uma reunião com a administração da empresa, relatou o assédio que vinha sofrendo e, manteve o pendrive com as fotos e a planilha em sua bolsa, para usar assim que precisasse. A surpresa, entretanto, foi que não precisou. Lhe agradeceram pela informação e disseram que tudo seria averiguado. No dia seguinte outras garotas foram chamadas para reuniões individuais e em pouco tempo a história se espalhou e se confirmou. Um relato deu coragem ao próximo e assim sucessivamente.

*

– Eu não acredito que nós conseguimos! Obrigada – Ela disse praticamente pulando em seus braços na saída, enquanto caminhavam até o metrô.

– Foi você quem conseguiu – ele respondeu, retribuindo de forma desengonçada.

Não estava acostumado a ter mulheres – mulheres de verdade, não as de suas fantasias – se jogando para cima dele.

– Não seja modesto. Foi um trabalho em equipe, só o fato de ter certeza e provas me deu coragem de agir.

– Fico feliz então.

– Mas e você, o que ganhou com isso? Quero dizer, eu consegui tirá-lo do meu pé, mas e você?

– Ganhei um final para minha próxima história – disse, com um sorriso no canto dos lábios.

– Não diga que você está escrevendo sobre mim! – ela reagiu com um leve tapa em seu braço.

– Nunca revelo minhas fontes, você sabe: tudo é apenas inspiração.

– Espera um pouco. Você sabia que isso ia acontecer? Você – ela foi absorvendo as palavras conforme elas entravam em sua mente – você fez de propósito?

Continuaram caminhando em silêncio.

Etiquetas:

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *