A ideia de passar as férias aqui foi do Pedro. Aliás, férias dele, pois eu ainda estava no período de licença e acho que se dependesse da minha vontade, ainda estaríamos em casa. Quando o médico me disse a data da cirurgia, seis meses atrás, senti muito medo, não me sentia pronta, apesar de desejar tanto as mudanças que eu acreditava estarem por vir. A mistura de sentimentos foi tão grande que nem me ocorreu calcular a data das férias de meu marido, eu só conseguia pensar que precisava aceitar e que a partir daquele momento não havia mais volta. Então foi o que fiz.
Pedro me acompanhou durante todo o processo, me apoiou na decisão, já que eu achava que isso era o melhor para mim, como ele disse. Compareceu a algumas consultas comigo e me ouviu pacientemente contando sobre os detalhes das que perdeu. Me levou para fazer os exames preparatórios e conseguiu folga no trabalho quando o grande dia chegou. Passou horas sentado na poltrona dura do quarto de enfermaria, respondendo as mensagens e ligações que não paravam de chegar em meu celular.
Depois ele fez piadas e nós rimos do dia entediante que ele passou no hospital, mas eu sei que na verdade estava nervoso. Encontrei-o cochilando quando fui levada para o quarto em cima de uma maca e com uma série de agulhas e aparelhos conectados a meu corpo. Ele acordou assustado e quase pulou de seu assento, mas se recompôs bem a tempo e abriu seu sorriso, ligeiramente torto, enquanto caminhava em minha direção. Eu, ainda sob efeito da anestesia, não consegui fazer nada além de uma leve pressão em sua mão que segurava a minha. Mas tudo bem, pois palavras não eram necessárias.
No fim do dia, fui encaminhada para outro quarto, onde fiquei por dois dias, em observação. A recuperação foi lenta, mas correu bem. A pior parte foram as restrições alimentares. Nunca pensei em como seria difícil ingerir apenas líquidos por sete dias. Quase chorei de emoção quando o médico disse que eu estava autorizada a começar a incluir coisas ligeiramente pastosas em minha dieta. Nunca comi uma sopa tão saborosa antes.
Apesar de estar bem, sentia-me fraca, a verdade é que as mudanças na alimentação me abalaram muito, mais do que eu gostaria de admitir. O médico me alertara sobre tudo isso antes, mas, em estado de euforia, nem pensei a respeito, apenas disse que eu aceitava, aceitava qualquer coisa desde que mudasse pra valer.
Tudo era recompensado conforme eu sentia as roupas ficando largas e escorregando de meu corpo. Eu não via a hora de fazer compras! Queria ficar bem para poder me exibir por ai. Mas, apesar de estar ansiosa para começar a vida nova, fiquei espantada em como Pedro se mostrou impassível diante de minha sugestão de adiarmos a viagem. Disse que eu ainda teria tempo o bastante para me recuperar até lá e que eu já realizara meu desejo, agora era sua vez, com as tão sonhadas férias.
Tentei me animar, afinal ele estava certo. Chamei minha irmã para ir ao shopping comigo e escolher algumas coisas novas para viajar. Fiz compras para um corpo já dezoito quilos mais leve e uns bons centímetros menor. Realizei o sonho de entrar naquelas lojas de departamento e escolher o que quisesse provar, pois agora a numeração não era mais um problema. Estava tão deslumbrada que nem olhei para o outro lado do corredor, onde as lojas que me serviram por tantos anos me observavam. Percebi o olhar de inveja que Bruna lançava para meu corpo toda vez que saía de um provador com um modelito diferente. Logo ela, que foi contra o procedimento até o fim, dizendo sempre que achava a cirurgia uma medida radical e que eu acabaria com minha saúde.
É indescritível a sensação de vestir roupas largas para variar e eu estava aproveitando cada segundo. Mas era tão difícil deixar de comer! No começo era porque eu não podia, depois descobri que mesmo se quisesse, eu não aguentava, pois bastava engolir algumas garfadas que eu já me sentia saciada e até enjoada. Aos poucos, fui me cansando de tentar, já não tinha ânimo para fazer minhas deliciosas sobremesas, afinal eu não aguentaria mais do que prová-las.
Quando me dei conta, estava evitando convites para almoço ou qualquer coisa que envolvesse ficar sentada em uma mesa com um prato de comida a minha frente. Meu corpo rejeitava as refeições que minha mente desejava. Eu fiquei esbelta, mas ainda era aquela que adorava cozinhar e se esbaldar.
Foi Pedro quem notou que algo estava acontecendo, disse que não entendia o que eu estava fazendo: finalmente caminhava para meu peso ideal, e ainda assim não parecia satisfeita. Eu neguei, é claro que estava! Não estava? Era o corpo dos sonhos! Ou seria, assim que eu desse um jeito nas cicatrizes e começasse a fazer exercícios físicos para combater a flacidez da pele.
Ainda assim, ele insistiu em voltarmos ao médico. Só que o doutor já não parecia mais interessado em meu caso e encaminhou-me para um colega, psiquiatra, e foi então que recebi o diagnóstico de depressão.
Loucura! Eu disse a mim mesma. Não tinha depressão antes, como poderia desenvolver agora, quando tudo começava a se ajeitar? Tentei seguir com a rotina, saboreando os elogios que recebia sobre meu corpo. Senti que fraquejava a cada dia, até me render e aceitar a licença médica que ele estipulou como prazo para minha recuperação.
Pedro, sem abrir mão das férias, nos levou para o outro lado do mundo. Minha mala estava irreconhecível, apenas com peças de roupas novas e muito mais ousadas do que as habituais, que cobriam e escondiam meu corpo. Só que eu não queria ir, imaginava a insatisfação de meus patrões e as fofocas que rolariam entre meus colegas de trabalho ao saberem que eu viajara em meio a um período de recuperação. “Pra viajar ela não tem depressão, não é?”, imaginava Sônia sussurrando pelos corredores com sua risadinha áspera.
Após longas horas de voo, chegamos a nosso destino. Foi estranho me acostumar aos sons da cidade, com tantas pessoas falando em um idioma que me era irreconhecível. Resgatei as aulas de inglês na memória e pensei que eram tudo o que eu dispunha, já que não entendia uma palavra sequer do francês que ouvíamos a líamos por todos os lados. Somente no hotel, enquanto meu marido conversava com a recepcionista, é que os sons foram virando palavras que faziam sentido em meus ouvidos.
Na manhã seguinte, ele recebeu uma ligação de trabalho, algo sobre um problema urgente que aparecera no escritório e a equipe precisava de sua ajuda para resolver. Seu olhar pedia desculpas, e eu sabia que aquilo seria inadiável, o trabalho era prioridade, sempre fora. Observei enquanto ele tirava o notebook da mala e me perguntei como fora parar ali, será que sabia que precisaria usá-lo?
Para não perder o dia, resolvi sair e explorar as cidades. As ruas eram pacatas e eu me sentia como em um dos muitos filmes que assistira neste cenário. Segui o caminho que o mapa da recepção do hotel me indicava e em alguns minutos cheguei no jardim de Rodin, um passeio que sei que Pedro não sentiria por perder.
Andei pelas árvores, tentando me manter nos corredores de pedra que cercavam todo o espaço. Desviava dos turistas que pareciam mais interessados em suas selfies do que nas esculturas tão divinamente esculpidas e expostas entre as árvores e arbustos.
Perdi a noção do tempo que estava parada ali, em frente ao bloco sólido de bronze, que percebi ter um formato mais humano que meu próprio corpo. Cada um de seus detalhes era característico, impossível confundí-lo com qualquer outra pessoa. Finalmente me dei conta de que era assim que eu me sentia desde a cirurgia, como se tivesse perdido a noção da humanidade. Eu já não reconhecia minhas partes, meus detalhes, era só mais uma, igual a tantas outras que passavam por inúmeras intervenções, na vaga tentativa de suprir o descontentamento que a sociedade nos ensinou a ter com nossos próprios corpos.
Percebi que o desespero daquele ser inanimado era mais real do que qualquer uma de minhas reações dentro deste corpo que já não mais me pertencia. Fazia meses que já não me sentia como antes, parecia até que toda minha essência se esvaziara pelo corte da cirurgia, como se o médico não tivesse costurado minha pele a tempo.
Senti o ar indo embora de meus pulmões conforme ficava ofegante. Apoiei-me em um tronco para evitar o desequilíbrio e pisquei os olhos repetidas vezes, desejando que a tontura passasse. A última coisa que vi antes de cair foi que a assinatura do artista nos pés da escultura lembrava vagamente a cicatriz que marcava a região de meu umbigo.