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Estranhas com memórias

Eu perdi uma amiga durante a pandemia. Não, não foi da forma como você está pensando. Ainda assim, doeu bastante.

Algumas amizades definham, outras simplesmente terminam.

Assim que saí da escola, prometi manter o contato com meus amigos. Mas a vida foi ficando corrida, cada um foi para um lado e então vieram a faculdade, o trabalho, o namoro… E ficou cada vez mais difícil nos encontrarmos.

Ainda trocávamos mensagens, lutávamos para abrir um espaço em comum em nossas agendas, até que a comunicação foi se espaçando para mensagens de aniversários e uma curtida aqui, outra ali.

E eu entendi que isso faz parte da vida. Ainda tenho algumas dessas pessoas nas redes sociais e acompanho, de longe, um pouquinho sobre suas vidas: uma foi morar fora do país, outra se casou e já tem uma filha, e uma delas dá dicas incríveis em seu perfil profissional. Às vezes a gente cresce em sentidos diferentes e os desencontros acontecem.

Na faculdade, o ciclo se repetiu, bem como em outros meios que frequentei. Algumas pessoas se afastam, enquanto outras seguem guardadas com carinho na memória. E são poucas as que realmente ficam, que crescem com a gente e continuam fazendo sentido em nossa história. Essas se tornam muito especiais – e essenciais – com o tempo.

Mas, pouco menos de um mês antes do mundo virar de cabeça para baixo, tive um pequeno desentendimento com meu grupo de amigos. Do meu ponto de vista era algo simples mesmo: manifestei um incômodo, gerei um incômodo, e conversamos sobre isso para seguir em frente sem mal-entendidos – ou pior, coisas não ditas.

Estávamos trocando mensagens até que alguém propôs um encontro presencial para conversarmos sobre tudo. Porém, logo em seguida, chegou a notícia da pandemia e da quarentena aqui no Brasil. Obviamente nosso encontro foi adiado.

E é claro que ninguém esperava que precisaríamos passar tanto tempo afastados.

Como medida emergencial, deixamos tudo isso de lado e nos comprometemos a trocar notícias, afinal, a prioridade era saber se todos estavam bem e em segurança. A amizade falou mais alto, sabe?

 Mas um incômodo ficou, e foi com uma única pessoa. Aquilo ficou martelando na minha cabeça, então eu a procurei e tentei resolver, mas ela disse que não estava em condições de lidar com isso no momento bom, em meio a uma pandemia, quem poderia julgá-la?

Só que os meses foram passando, e ela negou todas minhas tentativas de contato, até que atingimos o ápice: eu enviei um presente pelo correio em seu aniversário e ela nem se deu o trabalho de agradecer. Eu, boba, fui perguntar se havia sido entregue, pois a primeira coisa que eu pensei foi em extravio e não em descaso. Me enganei.

Esse foi o começo do fim.

A partir daí, comecei a me questionar se essa amizade tinha mesmo algum valor, pois, aparentemente, não era recíproca. Será que valia a pena insistir em alguém que decidiu me tratar de tal maneira? Passei os meses seguintes refletindo sobre isso e elaborando esse término.

Confesso que a história teve um agravante: nossos amigos em comum. Fiquei insegura quanto ao grupo e não quis envolvê-los, pois não queria que ninguém precisasse se posicionar. Entendi que aquele era um caso isolado – entre ela e eu.

Com o tempo, eu consegui me libertar desta relação. Nós compartilhamos muitos bons momentos juntas, sei muito sobre sua história, assim como ela sabe sobre a minha. Vivemos o final da adolescência e início da vida adulta juntas, foram muitas inseguranças compartilhadas, muito incentivo e sororidade – aliás, a gente nem conhecia essa palavra naquela época.

Eu acredito que nada apaga um relacionamento de mais de uma década. Mas é muito estranho pensar em como a balança estava desnivelada e em como ela não teve um pingo de consideração com nossa história.

Hoje, somos estranhas, mas ainda carregamos tantas memórias dos momentos compartilhados… Eu sei que este é um lugar estranho para se ocupar na vida de alguém, ainda assim, é melhor do que manter por perto – ou tentar ficar perto – de alguém que não te faz bem nenhum. 

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Eterno Rascunho

Não sei se você já reparou, mas existe algo de muito confortável em se trabalhar em um rascunho.

Quando começo a escrever um texto novo, nomeio o arquivo de “Rascunho”, seguido de seu tema principal, ou mesmo do título, se eu já tiver definido algum. Neste momento, sei que posso escrever qualquer coisa.

Posso me aventurar pelas palavras com a segurança de que a edição ainda vai chegar. Se precisar, posso apagar, reescrever e até mesmo recomeçar. E saber disso me dá uma liberdade imensa, experimento combinações e me aventuro pelas palavras.

Depois de escrever em um fluxo livre, gosto de deixar o texto e minha mente descansarem. Vou para outro trabalho e espero alguns dias passarem, e então retorno a ele com um novo olhar. Sinto que assim consigo lapidar ainda mais minhas palavras: desenvolvo melhor um pensamento, encontro erros de digitação e moldo as frases. Amarro os pensamentos de forma que o texto fique coeso e mais agradável para a leitura.

É depois disto que bate a insegurança… Quando declarar que um texto está realmente pronto? Pois sei que se eu me afastar novamente, quando retornar, terei outras alterações para fazer. Até quando vale a pena editar um rascunho? Como saberei quando declará-lo finalizado?

Vivo com o computador cheio de rascunhos e pendências, sem conseguir afirmar com certeza quando é que algo está realmente pronto. É difícil determinar o momento em que algo está concluído, que o pensamento se esgotou e eu consegui passar toda a ideia para o papel, me expressando da melhor forma que consigo – naquele momento. 

Acredito que a escrita, seja ela ficcional ou teórica, é muito influenciada pelo momento em que vivemos. Todo texto carrega um pouquinho dos nossos valores e modo de pensar, por isso, nosso estado emocional e nossa bagagem de experiências influencia as palavras que colocamos no mundo.

Sei que se eu reler um texto antigo sentirei vontade de arregaçar as mangas e começar um belo processo de edição, afinal, a pessoa que o escreveu já é diferente da que o lê hoje.

Por isso, digo que todos os textos são como eternos rascunhos, pois sempre pode-se mudar algo, e é justamente isso que torna a escrita um processo tão particular para cada autor. Então, de fato, não há muitas formas de mensurar a qualidade de um texto e decidir o momento de colocar seu ponto final.

Eu não termino um texto, apenas me canso de lhe fazer alterações.

Chega um momento em que é preciso deixá-lo partir. O texto ganha autonomia assim que o assino. Sei que ele sempre conterá minhas palavras, mas isso não quer dizer que elas ainda tenham o mesmo significado para mim e, se pudesse, sei que alteraria boa parte delas.

Caso você esteja se perguntando, esse texto foi editado algumas vezes antes da postagem e talvez seja melhor eu nunca relê-lo, pois só assim não desejarei fazer novas adições ou alterações. Dito isso, me despeço deste texto, e de você, caro leitor, com um sofrido ponto final.

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Primeira Vez

Eu já havia desmarcado essa consulta pelo menos três vezes. Algo sempre acontecia no dia e, sabe como é, as urgências atropelam os planos e somos obrigados a atendê-las.

Estava a ponto de procurar outra profissional, com vergonha de reagendar mais uma vez. Prometi a mim mesma que essa seria minha última tentativa. E parece que o dia estava disposto a colaborar comigo, já que o trabalho foi tranquilo e, sem nenhuma pendência no caminho, consegui comparecer à consulta.

Cheguei no endereço indicado pelo GPS, uma estreita porta de ferro em meio a duas lojas, bem próximo à praça, no coração do bairro. Olhei para os lados, antes de tocar o interfone. “Atende logo”, pensei, sem querer ficar exposta ali, no meio da calçada.

Ouvi o som da trava metálica se abrindo em resposta e só então localizei a pequena câmera no centro do interfone. A recepcionista deve ter me visto chegando. Ajeitei o cabelo com as mãos e respirei fundo antes de dar o primeiro passo. Estufei levemente o peito, adotando uma postura confiante e comecei a subir os degraus até a porta de entrada.

Havia uma pequena placa de vidro fixada na porta de madeira, com o nome da profissional e seu número de registro. Estava aberta, então entrei sem me anunciar. Ao contrário do que imaginava, encontrei a sala de espera vazia, sem uma recepcionista ou outros clientes. Só havia o barulho da televisão ligada ao fundo.

Localizei uma porta no canto esquerdo, ao lado de um filtro de água e supus ser o banheiro. Me encaminhei até ela e bati, sem resposta, arrisquei girar a maçaneta. Usei o banheiro, lavei as mãos e joguei um pouco de água fria no rosto.

Agora que estava aqui, o nervosismo começou a bater.

Nunca me imaginei sendo o tipo de pessoa que vai para a terapia. Nunca precisei de ajuda para resolver meus problemas. Ao contrário, sempre estive disponível para ajudar a qualquer um que precisasse. Até que descobri que era justamente esse o meu mal.

Voltei para a sala de espera e olhei as horas em meu celular, tinha alguns minutos até meu horário e, pela ausência de outras pessoas, supus que havia alguém em atendimento. Tentei prestar atenção na televisão, folheei uma revista que estava em uma das cadeiras e olhei cada uma das notificações em meu celular. Nada conseguia me distrair

E nada, absolutamente nada, parecia ser capaz de fazer o tempo passar. Contei as placas de piso no chão e, por fim, me entretive encarando uma pequena mancha que havia na parede, do outro lado da sala.

A sessão anterior atrasou. Deu meu horário e nada da porta do consultório abrir. Enquanto isso, comecei a elaborar um roteiro em minha cabeça. Eu não fazia ideia do que a psicóloga poderia perguntar, então comecei a pensar sobre como me apresentar.

Comecei a sentir um suor frio escorrendo por dentro de minha camisa social. Fui destrinchando minha história ali, em minha mente, sentada naquela cadeira dura com o som da vinheta do noticiário ao fundo. O nervosismo foi aumentando, eu me sentia nua, de tão exposta, sendo que eu ainda nem havia começado a fazer aquilo de verdade.

Salas de espera não deveriam existir, são um verdadeiro purgatório.

Escutei a trava se abrindo novamente lá embaixo e, em seguida, o som da maçaneta do consultório girando. Duas vozes no corredor, provavelmente a psicóloga e o paciente anterior, o que atrasou e invadiu um pedaço do meu horário.

Antes que pudesse resistir, agarrei minha bolsa, que descansava na cadeira ao meu lado, e saí em disparada pela escada, aproveitando que a porta estava aberta.

Hoje não deu, semana que vem eu tento novamente.

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O observatório da Praça de Alimentação

Se vamos ser honestos um com o outro, preciso fazer uma confissão: eu gosto de observar pessoas na praça de alimentação. Pronto, falei.

É como observar uma espécie em seu habitat natural e, como paulistana, eu diria que o lugar mais apropriado é o shopping.

Toda vez em que eu preciso dar uma saidinha de casa, para mudar um pouco de ambiente, pego meu caderno de rascunhos e meu laptop e vou almoçar ou tomar um café fora de casa. A vantagem de morar perto de um shopping é a diversidade de opções que existem na praça de alimentação. Então, sento-me em alguma mesa estrategicamente posicionada no canto do salão, quase escondida e esquecida por todos, mas com um ótimo ângulo para observar tudo o que acontece ao redor.

Tem de tudo um pouco: casais que criam uma brecha no dia só para se encontrar e, momentaneamente esquecer do mundo nos braços um do outro; pequenos grupos de estudantes uniformizados que saem juntos após a aula; mães que não quiseram ou não tiveram tempo de fazer o almoço; pequenas reuniões de negócios; novos matchs do Tinder se formando bem ali – em local público; almas solitárias que encontram companhia em seus livros logo após a refeição; pessoas que prestam mais atenção no celular do que nas garfadas que levam até a boca; funcionários de diferentes restaurantes aproveitando o horário de intervalo para interagirem entre si.

Tem atendente do McDonald’s conversando com chapeiro do Burger King, cozinheiro de restaurante por quilo almoçando comida mexicana. A mistura de culturas e de mundos que acontece dentro de uma praça de alimentação é inesgotável.

A comida tem um valor social muito grande, dizem que ela nos une, não é mesmo? O fato é que a maioria dos encontros, seja pessoal ou de negócios, acaba por envolver sentar-se em volta de uma mesa. Pelo menos um cafezinho pode ter certeza de que vai rolar.

É difícil me concentrar em qualquer atividade, mas volto para casa com o bolso cheio de referências para as próximas histórias, uma verdadeira aula prática de construção de personagens. Observo gestos, tons de voz, encontros e desencontros, o que as pessoas fazem quando estão sozinhas e como reagem quando seus encontros chegam. É praticamente um estudo antropológico.

Gosto de observar os detalhes que acontecem à minha volta e, eventualmente, dou uma olhadinha ao redor na procura de um estranho me observando. Tenho certeza de que alguém já escreveu sobre a garota solitária que passa a tarde dividindo a mesa – quase sempre a mesma mesa – com um computador e uma xícara de café e, ao invés de trabalhar, observa todos à sua volta. Fazendo anotações esporádicas em seu caderno. O que será que ela tanto anota?

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Poção do Amor

Eu pesquisei no Google, e agora o histórico de navegação me assombra. Mas, conhecimento adquirido é conhecimento compartilhado, então vamos lá:

“Poção do amor é uma forma mítica de beberagem, feita por feiticeiros, que é capaz de provocar em alguém os sentimentos amorosos em relação a outrem. É uma forma de feitiço de amor.”

Os sites vão ficando mais obscuros com o rolar da página. Descobri que, para a bruxaria, trata-se de um afrodisíaco que tem o poder de fazer uma pessoa se apaixonar pela outra. Existem diversas e inusitadas receitas disponíveis ao alcance de um clique. Mas cuidado, algumas advertem que a paixão pode acontecer pela primeira pessoa com quem fizer contato visual. Imagina o estrago?!

Pois eu não caio nessa. Se apaixonar é fácil, é leve, dá um friozinho gostoso na barriga. Não preciso de uma poção para fazer alguém se apaixonar por mim, isso eu sei fazer. Teve uma vez que deixei um cara caidinho por mim em uma festa, tenho certeza de que foi meu vestido decotado e o copo de bebida em minhas mãos, que chacoalhava enquanto eu dançava e ria com meus amigos, que o conquistou. Difícil foi fazer o encanto sobreviver a um encontro no final de semana seguinte, sóbrios, com iluminação neutra e som ambiente.

Teve também uma vez que fiz uma garota se apaixonar por mim, estávamos ambas sozinhas em uma manifestação, até que começamos a conversar e a caminhar lado a lado. Sabe como é, é bom estar acompanhado na multidão. Nosso papo tinha um cheiro afrodisíaco, também senti. Dividimos a garrafa de água que eu tinha na bolsa e paramos em uma lanchonete para comer um salgado, antes de nos separarmos na plataforma do metrô. Até chegar em casa, já estávamos mais íntimas, conversando por mensagem. No dia seguinte, ela tomou coragem e me chamou para sair. Eu é que não encarei, apesar da vontade, nunca saí com outra garota.

Teve ainda meu mais antigo caso de sucesso – ou fracasso – no quesito amor. Meu melhor amigo de faculdade, que passou os melhores anos de sua vida apaixonado por mim, logo eu, que nem o notava. Mantive o pobre coitado na friendzone por muitos anos. Quando percebi o que tinha feito, já era tarde. Sabe, com o tempo a gente descobre que existe uma linha tênue entre o amor e o ódio. Senti na pele como um sentimento consegue se transformar no outro, bastou uma faísca.

É por isso que eu digo, se apaixonar é moleza. Difícil mesmo é ter paciência e persistência. Porque o relacionamento leva tempo para ser construído, moldado de um jeitinho que fique bom para os dois.

Eu preciso de uma poção que me ajude a manter relacionamentos, uma que, magicamente, me revele como responder mensagens com pedidos de ajuda; que não me faça sair correndo quando sinto que já estamos muito íntimos; que feche a minha boca quando eu estiver prestes a dizer aquilo que estragará tudo.

Mas parece que para isso a bruxaria ainda não inventou uma fórmula com ervas e especiarias, ou então, o Google é que não sabe como me mostrar a resposta.

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Primeiro Dia de Aula

Talvez eu esteja começando a entender minha mãe, mais de vinte anos depois dela sentir o que sinto hoje: a agonia frente ao primeiro dia de aula do filho.

Acordei cedo, preparei a lancheirinha, revisei tudo uma porção de vezes só para garantir que não esqueceria nada. Já pensou se a minha menina passa vergonha no primeiro dia?

Lotei a caixa de mensagens da responsável pela creche, para confirmar os horários de entrada e saída. Não quero que minha filha cresça com o trauma de ser a última a ser buscada depois da aula.

Assim que tudo foi confirmado, fiz alguns combinados com a pequena. Prometi que seria divertido e que as outras crianças gostariam dela. Sim, é claro que ela poderia voltar para casa mais cedo se algo acontecesse, mamãe estaria pronta para ela, era só pedir para a tia me ligar.

Na noite anterior, fiquei mais nervosa do que ela, me revirando na cama, sem conseguir pegar no sono. Enquanto ela dormia profundamente em sua caminha, sem saber o que esperar do dia seguinte.

Finalmente o momento chegou. Saímos de casa mais cedo, já que eu não conhecia o trânsito nesse horário. Estacionei a duas quadras da creche e demorei para conseguir tirá-la do carro. Acho que o nervosismo bateu, e então suas unhas agarraram o banco traseiro.

Conversei, esperei que ela se acalmasse e a carreguei no colo até a calçada. Fomos até a porta e uma funcionaria sorridente veio em nossa direção, já com a mão estendida para pegar a lancheira de minhas mãos.

Maya balançou o rabo timidamente, ainda insegura. Quando confirmou que a mulher tentava pegar sua guia da minha mão, virou-se, pulando em mim e pedindo colo.

Voltei a lhe dizer que tudo ficaria bem, ela passaria o dia se divertindo com os outros cachorros e, de noite, eu voltaria para levá-la para nossa casa. A moça se abaixou e fez um carinho atrás de sua orelha, seu ponto fraco. Maya foi amansando, até que aceitou se afastar de mim.

Cachorrinha com mochila nas costas, pronta para o primeiro dia de aula na creche.

A funcionária, paciente, me garantiu que só o início seria difícil, mas, após algumas semanas, ela entenderia que aquela era sua nova rotina: viria brincar e sempre voltaria para casa depois.

“Posso buscá-la mais cedo, se necessário?”, perguntei.

Ela me tranquilizou, afirmando que não seria necessário. Maya ficaria bem.

Sim, mas e eu? Tive vontade de perguntar.

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Será que alguém nasce querendo ser escritor?

Quando criança, meu sonho era ser professora, assim como minha mãe.

Assim que entrei na pré-escola, meus pais penduraram uma pequena lousa no quintal. E eu passava a tarde toda lá fora, dando aula para uma fileira de bichinhos de pelúcia enquanto sujava toda minha roupa com giz.

Em seguida, comecei a desenvolver o gosto pela leitura. Os livros sempre foram bons companheiros. Primeiro herdei as antigas edições de contos de fadas que fizeram parte da infância de minha mãe, depois, chegaram os livrinhos infantis garimpados nas feirinhas da escola e, com alguma frequência, ganhava gibis da Turma da Mônica.

Uma de minhas brincadeiras favoritas era copiar as histórias dos livros em um caderno, já que eu logo terminava de ler e precisava esperar até ganhar o próximo gibi ou livro. Eu transcrevia as palavras e quase decorava uma história quando gostava dela.

Pode parecer estranho, porque era mesmo. Mas foi assim, de maneira solitária e me apoiando em outros autores, que me introduzi no mundo das palavras.

Na adolescência, comecei a me arriscar com minhas próprias ideias, escrevendo trechos de histórias sobre minha banda favorita, as famosas fanfics. Mas, sentia tanta vergonha que nunca consegui mostrar meus rascunhos para ninguém. É uma pena que eles tenham se perdido com o tempo.

Conforme fui crescendo, surgiu a curiosidade com o comportamento humano, um brilho nas aulas de filosofia. Algumas questões inquietavam minha mente adolescente e me faziam buscar respostas nos livros, foi assim, no último ano do ensino médio, que decidi ser psicóloga.

Entrei na faculdade e pensei ter encontrado meu lugar ao sol. Passei os anos seguintes  deslumbrada dentro da enorme biblioteca do campus, e se engana quem pensa que parei de estudar quando me formei. Aliás, arrisco dizer que foi só então que aprendi a estudar: sem um professor guiando meus passos, dizendo qual capítulo eu deveria ler ou o que decorar para uma prova.

Comecei a estudar filosofia e logo encontrei um grupo de estudos. As leituras coletivas me ajudaram a entender aquelas difíceis e encantadoras palavras. Os cadernos de anotações viraram meus tesouros.

Eu só não contava que a profissão fosse tão solitária. Com algumas horas vagas em meu consultório, a vontade de escrever voltou: pensamentos, frases. Foi assim que comecei a organizar meus sentimentos em um pedaço de papel.

Meu irmão foi o primeiro a dizer que um dia eu seria escritora, já que era uma ávida leitora. Eu não acreditei nele, e cheguei a rir de sua sugestão, afinal, não acreditava que eu tivesse algo de interessante a dizer.

Mas persisti, fui escrevendo a cada intervalo, dando voz à imensidão que me habitava. Ficção e realidade começaram a se misturar conforme meus pensamentos encontravam a folha em branco.

Tive a sorte de ser incentivada por amigos e familiares, que aceitaram ler meus escritos tão logo tive coragem de tirá-los da gaveta. E assim, a escrita passou a ocupar um lugar tímido em minha vida, um momento de descontração e lazer.

A verdade é que as pessoas à minha volta me reconheceram como escritora antes que eu o fizesse.

No trabalho, sempre sobrava pra mim a missão de escrever comunicados e agradecimentos, já que eu articulava tão bem as palavras. Quando precisava escrever um cartão, logo me passavam a caneta, afinal, eu era boa nisso.

O primeiro convite para publicação de um conto chegou como presente de natal atrasado, um singelo e-mail no dia vinte e seis de dezembro. Um ano depois, mais um. Mais dois anos, e eu já conto com uma pequena prateleira de participações.

Eu já deveria ter sacado à essa altura, não acha? Sinto lhe informar, caro leitor, mas demorei um pouco mais. Precisei ficar entre dois empregos, me sentindo extremamente perdida e desmotivada para olhar para os lados e perceber algo que esteve ali esse tempo todo.

Dessa vez, quando me perguntaram o que eu gostava de fazer, a resposta escapuliu: “escrever”. Foi mais forte do que eu, com gosto de sonho, mas então já era tarde. Ouvi minha própria voz ressoando por dentro e me atrevi a pensar o “e se” mais maluco da minha vida: “e se eu fosse escritora?”

Transformar esse hobby em profissão foi fácil, pois ele já estava completamente entremeado em minha vida, a rede de contatos, o blog e o portfólio feitos. A mudança de identidade simplesmente aconteceu.

Não nasci querendo ser escritora, mas foi nas palavras que descobri minha voz e tudo o que eu gostaria de dizer ao mundo.

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Garota de Hábitos

Sou uma garota de hábitos.

Rotina e planejamento são como música para meus ouvidos. Não há nada que me encante mais do que uma agenda bem preparada, com compromissos e atividades estabelecidos.

Listas são o meu hobbie. Organizo tudo, desde criança. Minhas coisas, as coisas de casa, e as coisas de outras pessoas, se elas permitirem. Minha mãe sempre contou comigo para fazer listas quando viajávamos, era eu a responsável por não permitir que ninguém esquecesse nada. Um hábito que mantenho até hoje, sempre que faço as malas.

Admiro pessoas que conseguem gerir seu tempo e manter uma rotina produtiva. Passei muitos anos andando nos trilhos de meu próprio planejamento. Uma garota certinha, que não sai da linha.

Sempre me orgulhei de ostentar tais características. E elas são louváveis mesmo, pelo menos até certo ponto. O problema é quando você se torna refém do planejamento e acaba por perder a flexibilidade, quando o hábito se torna obrigação e a agenda uma profecia do destino.

Demorei para descobrir que ser produtivo de verdade é saber usar o tempo de forma equilibrada: trabalho, lazer, autocuidado e descanso. Cuidar de mim e de meus relacionamentos é tão importante quanto concluir um projeto que está com o prazo anotado em vermelho na agenda.

A lógica é simples: se um aspecto da vida não vai bem, que chance têm os outros? Sem descanso, chega um ponto que o trabalho para de render, e o foco vai embora se tudo o que estiver em minha mente for uma briga que tive no dia anterior.

Apesar de usarmos técnicas que categorizam e fragmentam nossas atividades, somos um só, inteiros e completos. Somos o conjunto de nossos interesses, desejos e ações. Somos nossas referências, projetos e cada uma das tarefas que fazemos ao longo do dia.

Logo eu, tão organizada, precisei reexaminar todos os meus conceitos e reaprender a realizar minhas atividades, sem cronometrar meus afazeres, e deixando algum tempo livre para relaxar e cuidar de mim.

Fazer o que me faz bem também precisa ser um hábito.

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Máscara

Sonhei que esquecia de vestir a máscara.

Eu entrei no elevador, desci, caminhei pelo hall do prédio e sai pela portaria, cumprimentando Julia, a funcionária do turno da manhã. Ela respondeu com um aceno, sem levantar a cabeça, e continuou fazendo anotações em seu livro de registros.

Foi só quando coloquei os pés na rua e senti uma lufada de vento gelado batendo em meu rosto que percebi. Levei as mãos ao queixo, tensa, e confirmei: estava sem a usual máscara de tecido que cobria metade da face.

Afastei rapidamente as mãos, lembrando que tocara uma série de objetos pelo caminho e ainda não havia me higienizado com álcool em gel. Foi isso que a vida virou: limpeza, preocupação e culpa.

Dei meia volta, passando pelo portão de cabeça baixa, e refiz meu caminho, andando rápido, com medo de cruzar com alguém e precisar me explicar. O condomínio aplicava multas em quem transitava em área coletiva sem máscara.

Puxei a gola da blusa, para tentar cobrir a boca e o nariz, enquanto rezava para não encontrar com nenhum vizinho no elevador. A subida foi longa, e eu estava tão nervosa que sentia os dedos trêmulos enquanto tentava encaixar a chave na fechadura.

Parece que só me permiti respirar novamente assim que me vi no aconchego de minha sala. Antes, via minha casa como um local de descanso, agora, era meu espaço seguro, possivelmente o único onde me sentia à vontade e em paz. Podendo respirar sem um tecido roçando em meu rosto, coçar os olhos, comer e tocar livremente nos objetos, desde que estivessem higienizados, é claro.

Ouvi o som de uma música invadindo a sala e rompendo com meu silêncio. E então acordei.

Era o despertador.

Levei a mão ao rosto, tateando meu queixo, boca, e nariz. Estava tudo bem, ainda estava em casa. Me afundei debaixo nas cobertas e me espreguicei, tomando coragem para levantar.

***

Passei o dia todo pensando no sonho e na aflição por me sentir despida da nova vestimenta social: a máscara facial.

É curioso como mesmo algo extremamente incômodo pode se tornar um hábito. A máscara tem dupla função: nos protege dos outros, enquanto os protege de nós. No começo, me sentia incomodada e demorava a conseguir ajeitá-la no rosto junto com os óculos, de forma que as lentes não embaçassem, por conta da respiração.

Me sentia esquisita, feia. Contava os dias para que sua obrigatoriedade acabasse. Agora, mais de um ano depois, confesso que não sei se saberia reconhecer algumas pessoas sem ela na rua. A Julia, da portaria, por exemplo, está trabalhando aqui há seis meses, o que quer dizer que, apesar de nos cumprimentarmos diariamente, nunca vi metade de seu rosto.

 Também demorei para me acostumar a não cumprimentar as pessoas com um beijo no rosto ou aperto de mãos. Me parecia falta de educação, dizer “oi” sem me aproximar. Ao mesmo tempo, é estranho pensar no quanto nos expúnhamos desnecessariamente ao tocar tantas pessoas sem saber no que elas haviam tocado antes.

Higiene, saúde e proteção foram conceitos ressignificados durante a pandemia. Apesar de sentir falta da tranquilidade de não precisar me preocupar com tantos detalhes, espero que consigamos manter alguns dos hábitos de higiene recém adquiridos. Afinal, não há mal nenhum em lavar as mãos assim que se chega em casa, não é mesmo?

Não acredito que estejamos vivendo um “novo normal”, como tantas matérias sensacionalistas insistem em dizer. Ainda vivemos em meio ao caos e, apesar das previsões, ainda não sabemos como sairemos dessa. Transformados, eu tenho certeza.

Sei que a pandemia não acabou, a doença é uma ameaça, e o comportamento de algumas pessoas também. Luto diariamente para cuidar de minha saúde física e mental, estou aprendendo a conviver com minha ansiedade, já que ambas habitamos as paredes de minha casa. Tento cuidar das pessoas queridas à distância e cuido do coletivo ao colaborar, não saindo sem necessidade e tomando todas as precauções possíveis.

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Confinada

Eu sei que todo mundo já está cansado de ouvir falar em quarentena e que cada um tem o seu relato. Mas eu precisava escrever sobre isso, então me desculpe. A escrita é, para mim, uma forma de expurgar os sentimentos, coloco para fora tudo aquilo que não cabe em mim. E hoje, meus amigos, transbordo.

Completamos um ano de pandemia. Dá para contar nos dedos quantas vezes vi minha mãe, meu irmão e minha família. Os amigos eu não vejo desde janeiro do ano anterior. Lembro de todas as conversas que tive com a minha mãe, preparando-a com antecedência em cada data, já com a certeza de que não comemoraríamos nossos aniversários ou o Natal.

Fazer aniversário foi uma experiência muito estranha, porque eu adoro comemorar. Mas, me senti muito mal em celebrar a vida em meio a tanta destruição. Tantas famílias arrasadas, tanto desgoverno.

Terminamos uma volta ao sol e tudo ainda parece parado. Fomos pegos de surpresa, mandados para casa no susto, com nossos notebooks embaixo do braço e um suposto home office.

Só que nós não estamos trabalhando em casa, estamos de quarentena! É muito difícil fazer absolutamente todas as atividades dentro do mesmo ambiente, sinto que não descanso, não paro nunca. E, quando faço uma pausa, me vejo perturbada com as notícias, os números crescentes e as decisões mortais do governo. A ansiedade é tanta que não consigo dormir. Me encolho na cama, perdida em pensamentos e medos. Logo o despertador toca e começa tudo de novo: exercício, trabalho, almoço, jantar, cama.

Sinto-me impedida, estou em casa há mais de um ano, sem ir caminhar em um parque, como tanto amo, sem fazer uma compra que não seja no supermercado. Sair é uma experiência perturbadora agora: manter o distanciamento em relação a outras pessoas, o elástico da máscara apertando a orelha, o suor sempre escorrendo por dentro da máscara e abafando a respiração. O álcool que protege é o mesmo que resseca as mãos.

A vida parou, mas não voltará a ser como antes. A verdade é que ainda não sabemos como tudo será. Sem pessoas queridas, sem tantos comércios que não resistiram à devastação da economia. Ninguém sabe ainda como iremos nos comportar socialmente. Aglomerações me parecem uma realidade tão distante hoje, e digo isso com ingressos de shows comprados e guardados na gaveta. Será que me sentirei segura para ir a um evento? Provavelmente não.

Apesar de tudo, todas as noites agradeço por meus privilégios, tenho uma casa confortável, uma pessoa maravilhosa ao meu lado, e minha família ainda está bem. Sinto uma tristeza enorme dentro de mim ao pensar em quantas famílias estão enlutadas neste momento, enquanto pessoas como eu reclamam alergias na mão; ou pessoas como muitos de meus colegas nas redes sociais, que reclamam por não irem à praia.

Sinto um buraco enorme no peito, tristeza e ansiedade têm sido companheiras constantes. É horrível encarar a morte tão de perto ˗ e eu nem sei o que é estar em uma linha de frente ˗ e não saber até quando estarei bem. Por quanto tempo ainda aguentarei até minha saúde física e/ou mental desabar?

Cada dia é uma batalha, e estamos sobrevivendo: à Covid, à economia e às doenças emocionais que nos atingem. Minha luta diária, e o que eu desejo a todos, é que se protejam e sejam gentis consigo e com todos à sua volta. Não estamos motivados ou superprodutivos porque vivemos um período histórico digno de uma distopia.

Infelizmente é real.