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Noite de (são) João

A lenha estalava na fogueira, fazendo com que algumas fagulhas pulassem pelo chão. A noite de São João era sempre muito fria, por isso estava feliz por ter vestido uma blusa de lã por baixo da camisa xadrez vermelha e preta.

Todos os anos, no final do mês de junho, eu vinha para São Manuel visitar minha avó. A cidade era pequena, não chegando aos cinquenta mil habitantes, completamente diferente do agito da capital que eu estava habituada. Mas uma coisa era certa: essa pequena cidade sabia fazer as melhores festas juninas do mundo inteiro. Desde criança, eu ficava ansiosa pela data: as comidas, os cheiros e o calor da fogueira recheavam algumas de minhas melhores memórias. A camisa que eu vestia era praticamente meu uniforme, a primeira coisa que eu lembrava de colocar na mala quando vinha para a cidade.

Minha tia era responsável por levar meus primos e eu até a praça, no centro, onde acontecia o arraiá. Com o passar dos anos, começamos a ir sozinhos, sem supervisão dos adultos. Agora que já éramos adultas, minha prima, Márcia, fazia parte da organização da festa. E foi assim que acabei sendo escalada para ficar na barraca de bebidas.

Aprendi a fazer vinho quente e prometi que passaria parte da noite recolhendo fichas dos visitantes e trocando por copinhos de isopor cheios de bebida. Estava triste por perder parte da festa, mas animada em conhecer os bastidores. E, como pagamento, ganhei uma cartela de fichas para gastar nas outras barracas.

– A base do quentão é a cachaça, enquanto o vinho quente é feito com vinho tinto e especiarias – explicava, pela milésima vez para um grupinho de moças que já estavam bêbadas.

Elas riram como se aquilo fosse a coisa mais engraçada que eu pudesse dizer.

No fim, o trabalho não era tão glamoroso, eu precisava conferir a identidade de adolescentes que tentavam comprar bebidas alcoólicas e então vender-lhes algo da geladeira dos não alcoólicos: água, chá gelado ou refrigerante.

Alguém chegou e me pediu uma caipirinha, como se estivéssemos em um bar, mas então percebi que era uma cantada de mal gosto, dado que eu estava maquiada como caipira, com excesso de blush nas bochechas e pintinhas cuidadosamente desenhadas com lápis delineador. Também tinha um remendo em formato de coração costurado no bolso traseiro de minha jeans, algo que vovó aprontou mais cedo em minha calça.

Paçoca, milho verde e bolo de fubá, eu só conseguia pensar nas comidas que me aguardavam enquanto servia bebidas e ouvia a música sertaneja que ecoava pelas ruas ao redor da praça. O antigo coreto estava todo decorado com bandeirinhas coloridas, que balançavam com o vento da noite.

Uma música animada começou a tocar e algumas pessoas se reuniram em volta da fogueira para dançar. Aproveitei a baixa no movimento para olhar a festa. Peguei meu celular, que estava dentro da bolsa, e comecei a tirar algumas fotos das decorações e dos figurinos. Ele se destacava no meio da multidão, vestindo uma calça jeans justa, uma camisa xadrez em tons de azul e um grande chapéu de palha pendurado na cabeça.

– E ai, Fabi, como estão as coisas? – Márcia perguntou, se apoiando no balcão.

– Tudo bem por aqui, mas eu quero aproveitar um pouco da festa – respondi com cara de pidona.

Funcionou, minha prima recolheu a cestinha de fichas da barraca, anotou o que precisava trazer e disse que logo voltaria para recarregar a geladeira e com alguém para me substituir. Fiz mais uma receita de vinho quente na panela que estava no pequeno fogão à gás improvisado na estrutura metálica da barraca, e logo Márcia voltou com um rapaz carregando um carrinho cheio de latinhas de refrigerante. Os dois encheram a geladeira e ele já assumiu meu posto.

Agradeci-lhe e sai, de braços dados com Márcia.

– E então, já conheceu algum gatinho? – ela perguntou, me cutucando.

– Só alguns bêbados que me passaram uma cantada ruim.

– Não é possível, não quero que você vá embora com essa imagem aqui do interior. Depois você volta para São Paulo e todo mundo fica me perguntando sobre minha prima chique da capital. E você, o que tem para falar sobre mim?

– Deixa de fazer drama, sua boba. Eu só tenho coisas boas para falar sobre você e sobre a cidade. E até parece que alguém pergunta sobre mim.

– Perguntam sim, minhas amigas, e alguns garotos. Aquele ali inclusive – disse, fazendo um gesto discreto com a cabeça – o João, no ano passado ele ficou um tempão atrás de mim fazendo perguntas sobre a senhorita. Mas você já estava no ônibus de volta a São Paulo.

Quando me virei para ver de quem ela falava, dei de cara com o rapaz do chapéu de palha.

– Ele é daqui? – perguntei

– Não, ele é de São Paulo também, mas faz faculdade em Bauru, ele e os amigos sempre vem pra cá na época das festas. Por que, se interessou?

– Não – gaguejei – só estou perguntando.

– Hum, sei – só falta você vir até minha cidade e arrumar um namorado primeiro que eu! – ela interrompeu nossa caminhada assim que chegamos na frente da casa da Dona Lourdes, que cedera sua garagem como depósito para a festa – Prima, posso te deixar um pouquinho? Preciso visitar outras barracas e conferir se está tudo certo.

– Sem problemas, vou aproveitar para ir comer, estou faminta. É uma tortura ficar sentindo esse cheirinho de milho verde no ar.

– Vai lá, e descobre se o caipira tem um amigo pra me apresentar!

Mostrei a língua, em sinal de brincadeira, e continuei caminhando pela festa. Comecei a passear entre as barracas, deixando os sons e cheiros me invadirem, reacendendo as boas lembranças que tinha daquele lugar.

Fiz minha primeira parada na barraca do milho, onde comprei uma pamonha. Fui até a fogueira para me aquecer enquanto comia. Não percebi que ele vinha em minha direção, caminhando distraído, enquanto digitava uma mensagem, até que ele esbarrou em mim, derrubando quase toda minha comida no chão.

– Ei, olha por onde anda! – falei, irritada.

– Desculpa, moça, eu te compro outra – ele se virou e só então o reconheci.

– Não, tudo bem, estou com mais fichas aqui.

– Espera, eu te conheço? – perguntou.

Senti meu rosto corar sob seu olhar fixo e agradeci por estar com as bochechas revestidas de maquiagem.

– Não sei, minha prima disse que você ficou perguntando sobre mim no ano passado – provoquei.

Ele ficou parado por algum tempo e eu pude perceber que vasculhava sua mente em busca de mais informações.

– A Márcia – completei.

– Você é prima da Marcinha? Não pode acreditar em tudo o que essa garota diz, não. Espera, você é a prima de São Paulo.

– A própria. Fabiana – disse, estendendo a mão. Ele se esquivou de minha mão e me cumprimentou com um beijo no rosto.

– João, prazer.

– Mais de um João na mesma noite, o santo e você.

Ele riu e se ofereceu novamente para comprar outra pamonha. Recusei, mas disse que aceitava sua companhia para comprar um cachorro quente.

Fomos caminhando até a barraquinha e ficamos conversando enquanto esperávamos na fila. João estava no terceiro ano da faculdade de engenharia civil em Bauru, e tinha planos de abrir um escritório assim que terminasse a graduação. Ficou interessado quando lhe contei que cursava psicologia e me encheu de perguntas sobre filósofos e pensadores da área.

Sentamos em um banco da praça para que eu pudesse comer meu lanche e ele a maçã do amor que comprara de uma moça que andava pela festa com uma grande cesta de doces. Quando percebi, já estava falando sobre Freud e Jung, como uma típica caloura de psicologia.

– E você pensa em voltar então? – perguntei.

– Sim – respondeu, ainda mastigando – em sampa tem mais oportunidades, e minha mãe me mataria se eu não voltasse. Eu vou pra casa pelo menos um final de semana por mês, para ficar com meus pais.

– Deve ser difícil passar tanto tempo longe de casa.

– Por um bom motivo eu voltaria todos os finais de semana.

Sorri e dei uma mordida em meu cachorro quente, sem saber o que responder. Mastiguei lentamente enquanto ele me olhava, sorrindo.

Olha a cobraaaaa!

É mentira!

Fomos interrompidos pelo som estridente da quadrilha que começou a ecoar pelas caixas de som.

– Dança comigo? – ele perguntou. Jogamos nossos pratinhos no lixo e seguimos para o centro da praça, onde todos se reuniam para dançar quadrilha, ao lado da fogueira.

Olha a chuva!

Já passou!

Nos posicionamos na fila de casais e começamos a dançar. João sorria e eu me sentia hipnotizada por seu olhar. Demos as mãos para passar dentro do túnel e eu não conseguia parar de rir. Apesar de frequentar a festa anualmente, eu sempre dava um jeito de me esconder na hora da dança. Mas essa noite, o ritual estava completo.

Assim que os casais se dispersaram novamente pela praça, João se aproximou e segurou em minha mão. Me aproximei, e ele se abaixou, juntando nossos lábios. Um beijo doce, como maçã do amor.

Lembrei que ainda precisava perguntar se ele tinha um amigo para apresentarmos a Márcia.

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Amor na Quarentena

Mal posso dizer que me lembro da primeira vez que nos vimos. Estávamos no supermercado, ambos usando máscaras no rosto e com as mãos ainda úmidas do mandatório álcool em gel. Não era comum encontrar muitas pessoas fazendo compras às três da tarde, ainda assim, lá estávamos nós. Reparei nele em frente ao balcão da padaria, parado, esperando pacientemente com uma cesta em mãos. Eu, empurrando meu carrinho, parei na seção de frutas e verduras e comecei a escolher tomates, depois cenouras e, por último, maçãs. 

Estava pensando se devia pegar mais cenouras para fazer um bolo quando ele passou carregando um nas mãos. Salivei, constatando que realmente seria mais fácil comprar um bolo pronto. Mas, uma das metas que estabeleci na quarentena foi justamente a de me aprimorar na cozinha. Enquanto estava trabalhando não tinha tempo para nada e vivia dependendo de restaurantes e comida congelada, mas desde a demissão, estava usando a cozinha como forma de relaxar, uma dentre as várias tentativas de não surtar. 

Passava algumas horas diárias em frente ao computador, enviando currículos, mesmo que houvesse pouca esperança de conseguir um emprego em meio à pandemia. E, no restante do tempo, precisava me ocupar com outras coisas, certo? Voltei e enchi um saco com mais cenouras, além de escolher algumas mandioquinhas para fazer aquela receita de sopa que havia encontrado no dia anterior.

Perdi meu companheiro de vista por algum tempo e só fui reencontrá-lo no caixa, quando percebi que ele parou atrás de mim em uma fila composta por nós dois e mais uma senhora de bastante idade. Esvaziei meu carrinho, colocando tudo em cima do balcão e cumprimentei a atendente que passava os produtos em frente ao scanner, concentrada demais para me responder. Fui até a outra ponta para colocar os itens em sacolas e travei uma batalha silenciosa com o pedaço de plástico em minhas mãos. Eu tinha o hábito de molhar a pontinha do dedo com saliva para conseguir abrir a sacolinha, hábito banal antigamente, mas que seria brutalmente condenado em tempos de coronavírus. 

– Deixa que eu te ajudo – ele disse, se aproximando e pegando uma sacola de cima do balcão – Faz assim – roçou as pontas do plástico uma na outra até que se desprenderam. 

Virei, olhando-o de perto dessa vez. Tudo o que pude concluir foi que seus olhos eram bonitos. Ainda estava me habituando a ler expressões faciais apenas pelas sobrancelhas, então não consegui sequer precisar se ele sorria por baixo da máscara ou não. 

– Obrigada – respondi e voltei a me concentrar em meus produtos. 

Terminei de guardar, inseri meu cartão na maquininha e fui embora, com sacolas penduradas em ambos os braços e feliz por estar com as mãos ocupadas e não poder coçar meus olhos, que insistiam em arder em horas impróprias. Ainda era estranho não poder tocar meu próprio rosto, e respeitar todas as novas normas de higiene exigia esforço. De repente me sentia extremamente consciente de tudo o que fazia quando estava na rua. 

Voltei para o prédio, esperei o elevador esvaziar para entrar – outra norma de segurança – e subi. Tirei os sapatos antes de entrar em casa, passei mais uma camada de álcool nas mãos com o frasco que agora ficava em cima de um vaso de planta ao lado da porta e, finalmente, entrei.

Não pensei mais nisso, até que, dois dias depois, achei tê-lo visto saindo do elevador. Eu havia descido para levar o lixo até a garagem. Mas, como estava sem óculos, e só o vira uma vez – e apenas metade de seu rosto – não podia afirmar. Pensando bem, podia ser qualquer um. Era difícil identificar as pessoas tão cobertas, especialmente porque em geral em saía sem meus óculos, já que as lentes ficavam completamente embaçadas com a respiração abafada pela máscara de tecido. 

Após tanto tempo em casa, me sentia melancólica, com saudade de pequenas coisas, como ver o rosto de alguém por inteiro. Isso sem contar na falta que me fazia uma caminhada ao ar livre, sentindo o sol batendo em minha pele enquanto andava com Nina em um parque, me deixando levar por seus puxões na coleira. Sentia falta de almoçar fora, pedir um suco, escolher uma sobremesa, ver pessoas aleatoriamente ao longo do dia, e não apenas alguns poucos rostos conhecidos em chamadas pré combinadas pela tela do celular.

Enquanto estava em casa me protegendo, sentia falta da vida. 

O interfone tocou, me tirando de meus devaneios e os latidos de Nina me trouxeram de volta à realidade. Um homem, que se apresentou como “Miguel, o vizinho do cento e vinte três”, disse que precisava comprar máscaras de tecido e que alguém do prédio havia me indicado. Logo imaginei dona Tereza, anunciando de andar em andar meu novo serviço. 

Fui demitida da agência assim que a pandemia começou. Sabíamos que enfrentaríamos um período de recessão e, numa medida preventiva, a empresa demitiu metade do time de marketing, inclusive eu. Passando o dia todo em casa, desenterrei a máquina de costura que herdei de vovó, assisti alguns tutoriais na internet e voilà! Usei alguns restos de tecido e elástico para criar minhas próprias máscaras. Basicamente, alternava entre mandar currículos, cozinhar, costurar e maratonar episódios de séries. Me guiava pelos horários de refeições de Nina e agradecia todos os dias por ter sua companhia. 

A campainha tocou e ela começou a latir, prendi-a na cozinha para poder atender. Miguel, como você já deve ter adivinhado, era o tal mascarado do supermercado. Nos apresentamos e ele disse que precisava comprar algumas máscaras, pois as que encontrava por aí sempre tinham elásticos justos e o deixavam com dor nas orelhas. Ri e disse que não havia problema, eu podia fazer do tamanho que ele desejasse. 

Convidei-o a entrar e passamos pelo desajeitado ritual de tirar os sapatos, passar álcool em gel nas mãos e manter as máscaras no rosto. Era a primeira vez que alguém entrava em casa em muito tempo. Fui até a lavanderia em busca de minha caixa de tecidos e Nina escapou sem que eu percebesse. Quando voltei para a sala, encontrei Miguel sentado no chão fazendo carinho do pescoço da cadelinha que não parava de se balançar, não era apenas o rabo que ela abanava, era o corpo inteiro. Talvez Nina estivesse ainda mais sedenta do que eu por contato humano. 

Mostrei uma máscara pronta a ele, os tecidos que tinha em casa e tirei algumas medidas de seu rosto. Ele escolheu algumas cores neutras e combinamos que eu lhe avisaria quando as máscaras estivessem prontas. Isso implicou em trocarmos nossos números de telefones. 

Daí em diante, passamos a nos ver quase todos os dias pelo prédio, na garagem, elevador ou portaria. Provavelmente nunca havíamos nos encontrado antes porque nenhum dos dois parava em casa, mas agora estávamos todos forçosamente presos em nossos ceps. Ele era programador e estava trabalhando em casa desde o início da quarentena.

Também começamos a trocar mensagens e conversar sobre temas aleatórios. Era divertido ter alguém para conversar em meio à pandemia, falar sobre qualquer outra coisa que não fosse “e a vacina, quando será que fica pronta?”. É claro que eu ainda saía de casa para fazer algumas compras e também visitava minha mãe, ainda que sem descer do carro, mas me apresentar a uma pessoa nova era uma forma de não esquecer quem eu era. O que parecia positivo, após tanto tempo em casa olhando para as paredes e fazendo monólogos com um cachorro. 

Assim que terminei as máscaras, avisei-lhe por mensagem. Ele, em resposta, disse que teria reuniões por vídeos até o fim do dia, então só poderia vir buscá-las no dia seguinte. Antes que eu pudesse me oferecer para subir e entregá-las, veio o convite. Miguel perguntou se eu gostaria de jantar com ele na sexta-feira, em casa, claro. Senti um frio no estômago só de imaginar como seria ter contato de verdade com alguém após seis meses de isolamento social. Já que ambos morávamos sozinhos e estávamos respeitando todas as regras, topei. Pedi que fosse em minha casa, para não deixar Nina sozinha, e ele pareceu animado com a oportunidade de revê-la. 

Então, na sexta-feira, após o expediente, ele enviou uma mensagem e desceu até meu apartamento. Trouxe uma garrafa de vinho e já chegou tirando os sapatos, e só então me dei conta de que não deveria deixá-lo descalço por tanto tempo. Ofereci-lhe uma de minhas pantufas e ele escolheu a de unicórnios. E foi assim que, de repente, havia mais alguém na casa além de mim, uma cadela e algumas plantas. 

– É bom ter alguém para conversar – disse enquanto ia até a cozinha buscar taças e um abridor para a garrafa. 

– Também acho – respondeu se sentando em uma cadeira e acariciando os pelos do pescoço de Nina – eu já estava enlouquecendo. 

Eu já sabia que ele era carioca, por seu sotaque inconfundível. Enquanto conversávamos, ele contou que toda a família morava no Rio de Janeiro, e ele veio para São Paulo assim que se formou porque conseguiu um emprego aqui. Sua companhia eram os colegas de trabalho e um amigo dos tempos de escola que também havia se mudado. Agora, trabalhando de casa, estava privado de contato físico com todos. Eu lhe contei que havia sido demitida e que estava numa corrida por um emprego novo, algo que obviamente estava ainda mais difícil nesse momento. 

Pedimos uma pizza e ele fez questão de descer para buscar e pagar quando chegou. Quando voltou, eu já o esperava na porta, com álcool gel em mãos. Higienizei a embalagem da pizza e nos servi. Nina deitou aos pés dele enquanto comíamos. 

– Me sinto traída! – brinquei apontando para a cadelinha adormecida. 

– O que posso fazer? Ela tem bom gosto – riu. 

Trocamos dicas de filmes e seriados, criticamos a má conduta do governo e no fim já estávamos trocando receitas. Ele prometeu que faria seu famoso hambúrguer caseiro em nosso próximo jantar.

Eu levei nossos pratos para a cozinha enquanto Miguel ficou na sala brincando com Nina, depois me juntei a eles e ficamos os três sentados no tapete. Era estranho estar perto de alguém após tantos meses sozinha, mais estranho ainda era me sentir à vontade com esse alguém. 

– O que foi? – perguntou e de repente me tornei consciente do fato que devia estar encarando-o há algum tempo. 

– Estava só pensando que é engraçado morarmos no mesmo prédio há tanto tempo e só nos conhecermos agora. 

– Viu, nem tudo o que está acontecendo esse ano é ruim. Fico feliz por ter te conhecido. 

Parou de afagar o pescoço de Nina e se apoiou no tapete, com a mão roçando na minha. Tentei puxar, em uma reação automática, mas ele a pressionou levemente. Era bom sentir um calorzinho ali. 

– Eu também – respondi, fechando os olhos quando o vi se aproximando para um beijo.

Nina latiu, nos fazendo rir, com os lábios ainda colados um ao outro. A sensação quente de sua respiração tão próximo a mim me fez estremecer. Ele me abraçou e eu me aconcheguei em seu peito. Nina pulou no meu colo, ficando entre nós, abanando o rabo. 

– Acho que era tudo o que ela queria – brinquei. 

– Eu também – ele respondeu, sussurrando em meu ouvido. 

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Maçã do Amor

Quando concordei em participar do evento, não imaginei que teria tanto trabalho. Como se não bastasse ter que ir à maldita festa, eu havia sido encarregada de comprar bugigangas, fazer uma receita, e fora para decorar o salão algumas horas antes do grande dia.

Meu vestido já estava separado, junto com as sandálias de salto alto e os acessórios, eu sabia exatamente a maquiagem faria e como prenderia meu cabelo. O dia precisava ser perfeito, meu sorriso estaria parafusado no rosto, disso eu tinha certeza. Afinal, todos estariam lá, desviando seus olhares em minha direção. 

Cheguei em casa após algumas horas enfrentando o calor escaldante que fazia na rua, parecia impossível ser tão difícil comprar um pacote de palitos de madeira. Andei quase a avenida toda até ter algum sucesso. A volta para casa, dentro do vagão quente do metrô, serviu apenas para coroar um dia horrível. Tive medo de que as maçãs fossem amassadas, mas sobreviveram à aventura. 

Fui direto para a cozinha, depositei as sacolas e a bolsa em cima do balcão e fui até a torneira para lavar as mãos. Aproveitei e joguei um pouco de água fria no rosto e na nuca, gerando um alívio instantâneo para o calor que emanava de minha pele suada. Ainda com os olhos fechados, alcancei a gaveta de panos de prato e peguei um novo para secar o rosto. 

Desbloqueei a tela do celular, procurei a receita em meio à conversa das madrinhas e finalmente dei início ao ritual culinário. Separei, cuidadosamente, todos os ingredientes em cima da pia: açúcar, vinagre, corante, as maçãs e os benditos palitos. 

Liguei o som, deixando a música invadir a casa e meus ouvidos. Escolhi uma assadeira grande, forrei com papel manteiga enquanto cantava alto junto com Taylor Swift, pena que uma de nós sempre errasse o tom. 

Abri a torneira e lavei as maçãs, uma a uma, com cuidado, me certificando que nenhuma delas estava machucada, afinal, a aparência era de suma importância naquele dia. Tirei os cabinhos, substituindo-os por palitos de madeira, aplicando força para encaixá-los dentro de cada maçã. Bufei, irritada, ao quebrar o primeiro palito em minhas mãos. Peguei outro e tentei com menos força, até que consegui espetá-lo na maçã, rompendo sua casca e penetrando em direção ao miolo do fruto, deixando um pouco de caldo escorrer entre meus dedos. Lambi a mão, voltei a me lavar e repeti o processo em cada uma das maçãs. 

Em uma panela, misturei um pouco de água filtrada com duas xícaras bem cheias de açúcar cristal e meia colher de chá de vinagre. Torci o nariz ao sentir o cheiro forte desse último entrando em minhas narinas. Liguei o fogo para aquecer a mistura e fiquei observando até que começasse a ferver. Sem mexer, apenas usei uma espátula de silicone para ir limpando o açúcar que se acumulava nas bordas do recipiente. Depois do ponto de fervura, deixei cozinhar por cerca de vinte minutos, diminuindo o fogo e tampando a panela. 

Aproveitei o intervalo e fui até o quarto para me trocar, vesti algo mais leve e confortável, troquei os sapatos por minhas pantufas e, após prender o cabelo em um coque alto no topo da cabeça, finalmente me sentia em casa. Senti o cheiro adocicado que já dominava a casa toda e voltei bem a tempo de desligar o fogo. 

Peguei uma colherada da mistura e despejei em um pote cheio de água fria. Assim como a receita descrevia, vi a pequena massa endurecer instantaneamente, retirei, apoiando na pia e dei uma pancadinha com a colher, assistindo-a se quebrar. No ponto, firme e crocante. 

De volta à panela, acrescentei meia colher de corante vermelho em pó. Depois, fui até o armário e peguei o pequeno frasco sem rótulo que guardava atrás das xícaras. Despejei cinco gotas na mistura fervente, mexi com uma colher, e dei mais um esguicho, perdendo a conta. Faria diferença? 

Ri, aumentando ainda mais o som, e levei a panela para cima da pia. Cantei, usando a colher melada como microfone e fiquei observando enquanto a calda esfriava e parava de borbulhar. Me aproximei para sentir seu cheiro doce e convidativo. 

Inclinei a panela, e comecei a mergulhar as maçãs, uma a uma, segurando-as pelos palitos. Depois de mergulhar, levanta-as de volta e esperava o excesso de calda escorrer de volta para a panela. O passo seguinte era polvilhar com os pequenos confeitos coloridos em formato de coração. 

Fui ajeitando-as na assadeira, com algum espaço entre cada uma, para que não grudassem. Agora só precisaria esperar que esfriassem bem para então embrulhar em saquinhos transparentes, amarrados com um lacinho no topo. E assim tudo estaria finalmente pronto para o chá de panela.

Olhei para a pia com a louça suja acumulada e revirei os olhos, esperava ao menos que o noivo apreciasse meu esforço em me aproximar de sua querida futura esposa. Desliguei o som, ainda cantarolando e saí da cozinha, apagando a luz atrás de mim.

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Ajustes

A chuva batia insistentemente na janela, tentando competir com o jazz que ecoava do lado de dentro do café. Olhei, novamente, na esperança de vê-lo chegando, mas não havia ninguém na paisagem cinza e chuvosa daquela terça-feira. Apenas uma porção de carros que passavam apressadamente com seus vidros fechados e embaçados.

Olhei para o relógio em meu pulso, frustrada, e depois me concentrei na fumaça que espiralava da xícara de café com leite que a garçonete acabara de depositar a minha frente. Peguei-a, com as duas mãos, sentindo o calor fazer cócegas em meus dedos. Apreciei o café com todos os sentidos, inalando o aroma antes de finalmente degustá-lo.

Amargo.

Me contorci em uma careta, sentindo o gosto impregnado em minhas papilas e me inclinei para alcançar um sachê de adoçante. O açúcar já fora, há muito, proibido pelos médicos.

Desviei minha atenção para a porta ao ouvir o barulho da sineta que anunciava a entrada e saída de clientes do salão. Uma mulher de meia idade segurava a porta aberta com o pé enquanto chacoalhava seu pequeno guarda-chuva do lado de fora. Ela amassou-o em uma dobra malfeita para que coubesse na sacola de plástico, também molhada, que retirou da bolsa. Movi meus pés, embaixo da cadeira, só para conferir se meu guarda-chuva ainda estava lá.

Bebi todo o café, ainda quente, sentindo o estrago que a temperatura fazia em minha língua. Cansada de esperar, de repente sentia urgência em ir embora.

Assim que baixei a xícara de volta na mesa e me virei para pegar o cachecol, que estava embolado no braço da cadeira, ouvi a irritante sineta, dessa vez seguida de passos firmes em minha direção. Enrolei o tecido em volta do pescoço, concentrada em fazer um nó ao centro, deixando que as pontas caíssem simetricamente sobre a blusa.

– Amália – disse, enquanto puxava a cadeira para se sentar a minha frente.

– Atrasado, como sempre – respondi, olhando teatralmente em direção ao relógio.

– Você viu a chuva que está lá fora?

– Não vi, mas verei em breve, estou indo embora – disse me levantando e retirando o casaco da cadeira para vesti-lo novamente.

– Não, não está – disse, puxando minha mão para me conter.

Senti uma corrente elétrica percorrendo todo o meu corpo e puxei os dedos.

– Me solta – pedi, em um sussurro.

– Olha, me desculpe pelo atraso, mas agora estou aqui, e realmente precisamos conversar.

Revirei os olhos antes de sentar novamente.

– Cinco minutos. É tudo o que você tem.

– Com o temporal que está caindo lá fora? Eu diria que temos a tarde inteira.

Ele se virou, fazendo um sinal para a garçonete e esticou o braço para pegar um cardápio na mesa ao lado. Observei seus olhos correndo as páginas, daquele jeito tão familiar. Assim que a atendente se aproximou, fechou o cardápio e fez o pedido habitual: pão na chapa com requeijão e um expresso duplo. Eu pedi outro café.

Em seguida se levantou, indo ao banheiro. Peguei o celular para conferir as últimas notificações, qualquer coisa para me manter ocupada e não pular em cima dele. Toda a saudade que sentia só havia aumentado ao encontrá-lo. Aparentemente, vê-lo e não poder tocá-lo era ainda pior do que passar quase um ano sem notícias suas.

Assim que voltou, nossos pedidos já estavam na mesa. Observei-o levando a xícara aos lábios, os pelos da barba roçando na beira da porcelana. Desviei o olhar para a janela e tentei me concentrar nas gotas que escorriam pela vidraça.

– Você está diferente – comentei.

– Obrigado. Mudei o corte de cabelo, eu acho. Você também, parece bem.

Sorri, em resposta. Engolindo a enxurrada de palavras que desejavam sair por minha boca.

– Obrigada – me contentei em responder.

– Não tem um jeito fácil de lidarmos com isso, então irei direto ao assunto. É importante para mim.

– E quanto ao que eu quero? E o que é importante para mim? – respondi, falhando em manter a respiração controlada.

– É claro que também importa, esse é o ponto, vim aqui para tentarmos chegar a um acordo. Você me diz o que te incomoda e nós tentamos alterar até que fique confortável, ok? – senti minha pele ruborizando sob seu olhar de pena.

Nada que ele pudesse me oferecer seria confortável, nunca mais. Sentia vontade de gritar, de perguntar o motivo dele se achar superior a mim, de ter nos superado, enquanto eu ainda o desejava desesperadamente.

– Não é uma questão de alterações – disse, me focando em controlar a respiração – é só que eu não quero ter minha vida exposta a milhões de leitores.

– Quem me dera vender milhões, espero que esteja certa – riu – E não é a sua história, é a minha, e a nossa, que se passa no meio dela.

– E as outras estão confortáveis com isso? – Vasculhava meu cérebro atrás de qualquer coisa que pudesse magoá-lo, assim como ele vinha fazendo comigo.

– Não tem nenhuma outra, você sabe. Além do mais, é ficção, apenas me inspirei em alguns elementos reais. Olha, quis te mandar uma cópia do texto antes por consideração, detestaria deixá-la descobrir por conta própria, ao entrar em uma livraria. Mas a verdade, Amália, é que eu publicarei de qualquer forma. O contrato com a editora já está assinado.

– Mesmo que isso custe seu relacionamento com a doce Mariana?

– O que a Mari tem a ver com tudo isso? – perguntou em meio a um suspiro.

Apesar de seu ar descontraído, pude perceber os músculos se contraindo em seus ombros. Melhor assim.

– Bem, ela não sabe o que é ficção ou não. Será que ela poderá ter certeza de alguma coisa depois disso vir a público? Será possível confiar em você novamente? E aquela viagem que fizemos juntos a Monte Verde no inverno, vocês já estavam juntos, não esta

– De que viagem está falando? Isso nunca aconteceu.

– Eu sei. Você também, mas ela não. Acha mesmo que alguém consegue namorar um romancista por muito tempo? Eu fiz essa besteira e veja minha situação agora.

– Amália, você não pode me chantagear, ainda mais com algo tão infundado.

– Arrisque se quiser.

– Que tal se você ler o texto, eu te dou mais uma semana para pensar e…

– Você não pode, não é? Não pode publicar sem minha autorização. Aposto como existe uma cláusula no seu precioso contrato. E você veio até aqui fingindo que sua preocupação é comigo. Se você não precisasse mesmo da minha autorização não se esforçaria tanto, você esquece que eu te conheço… Te conheço muito bem. 

Vi seu último fio de esperança partindo ao meio, finalmente. Ele se ajeitou na cadeira, com os olhos arregalados.

– Você sabe que é importante para mim, é o maior sonho da minha vida – disse em um sussurro rouco. 

Era divertido vê-lo perdendo o controle para variar.

– Então escreva sobre qualquer outra coisa que não sobre mim.

– Não é sobre você, me baseei em alguns dos meus relacionamentos anteriores.

– E eu deveria me sentir melhor por isso? – perguntei, cruzando os braços em frente ao peito.

– Não, claro que não. Você sabe que nossa história foi muito importante, mas só porque nós não demos certo não quer dizer que não possamos ser amigos.

– Não quero ser sua amiga.

– Por favor – disse, abaixando a cabeça e se concentrando em um ponto na mesa entre nós – Preciso que você assine um termo de autorização. Se precisar de mais tempo para pensar, eu entendo. Se quiser que eu faça ajustes, podemos conversar, estou disposto a… negociar.

– Quero que altere o final da história.

– Mas você não aparece no final.

– Exatamente, querido, me deixe voltar para sua vida, me deixe fazer parte dela de novo, e assim terá todo o aval que quiser.

-Amália, seja razoável.

– Estou sendo: ela ou eu?

– Ela!

– Seu precioso livro sendo publicado ou ela?

Ele permaneceu em silêncio.

– Foi o que pensei – ri, levando a xícara aos lábios.

– Por favor.

– Estou apenas começando. Como você disse, temos a tarde toda. Vamos aos ajustes – sorri.

Ele bufou, ajeitando a postura na cadeira.

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Amarelo

Aquela tinha tudo para ser uma manhã como outra qualquer, mais um dia presa na mesma rotina. Mas então tudo mudou e mal sabia ela como desejaria voltar a sua habitual monotonia. 

Marisa acordou, como sempre, sofrendo com o som do despertador que invadia seus ouvidos, acabando com o silêncio do quarto. Ainda sem abrir os olhos, tornou-se consciente de todos os barulhos a sua volta, do som de carros passando lá fora ao tic-tac do velho relógio de parede. A respiração pesada de Toby inundou o cômodo, era bom saber que alguém ainda dormia. Um beagle gordo de meia idade que lhe fazia companhia, aliás, sua única companhia desde que o casamento terminara. 

Finalmente se rendeu, abrindo os olhos e se ajeitando para alcançar as pantufas. Esbarrou na caminha de Toby no caminho até o banheiro, provocando alguns resmungos abafados. 

Sentia como se nada funcionasse antes de beber seu sagrado primeiro gole de café. Então desceu e foi direto para a cozinha, parando apenas para abrir a porta dos fundos que dava para o pequeno quintal, assim Toby poderia usar seu banheiro também. Pegou, mecanicamente, o pó de café e o coador, contando em voz alta as colheradas, para, em seguida, levar à cafeteira, onde a mágica acontecia praticamente sozinha. 

Enquanto colocava sua solitária xícara de porcelana na mesa, começou a ouvir os latidos do cão lá embaixo. Seguiu até a escada, tentando entender o que acontecia, como não conseguiu detectar qualquer anormalidade, desceu. Assim que chegou no último degrau viu que dois de seus vasos estavam caídos no chão, provavelmente efeito do vento da madrugada. Havia terra espalhada pelo quintal e pedaços das plantas que haviam se despedaçado com a queda. Toby pisou na terra, sujando tudo ainda mais. 

Bufou, irritada, pensando que precisaria limpar as patas do cachorro antes de deixá-lo entrar em casa novamente. Só então reparou que ele estava encostado na porta que dava acesso à garagem, farejando com força pelo estreito vão até o chão. Ele se movia de um lado ao outro, tentando achar uma posição, como se quisesse passar por baixo da porta, tamanha era sua urgência. Seu bumbum empinado e os pelos eriçados indicavam uma posição de ataque. 

Foi quando se deu conta de que havia algo errado. Talvez o assassinato de suas plantas não fosse obra do vento, mas sim de algum animal noturno que tivesse se esgueirado pelo quintal durante a madrugada. Sentiu um arrepio percorrendo suas costas ao imaginar que pudesse estar dividindo sua casa com um hóspede indesejado: um rato. Afinal, Toby nunca reagira daquela maneira.  

Ela afastou o cachorro da porta, com alguma dificuldade, e abriu apenas o suficiente para conseguir entrar, deixando-o latindo furiosamente do outro lado. Acendeu a luz e pegou a primeira coisa que localizou e que poderia ajudá-la a se defender da criatura, caso houvesse alguma: um guarda-chuva que fora esquecido atrás da porta. 

Foi andando pela garagem, tentando observar qualquer movimentação estranha ou o que quer que estivesse fora do lugar. Havia uma pilha de caixas em um canto, coisas de sua filha, que saíra de casa há quase um ano, mas ainda não havia terminado de levar seus pertences, com a desculpa de que o novo apartamento era muito pequeno. Foi ela quem quis se mudar, não foi, pensou com irritação. Ela detestava aquelas caixas e o lembrete diário de sua solidão. 

Se houvesse algum animal escondido na garagem, só podia estar ali, naquele amontoado de papelão e lembranças. Tomou coragem para se aproximar, empunhando o guarda-chuva, ela apertava tanto a mão em volta do cabo que logo os nós de seus dedos ficaram doloridos. Usou-o para afastar as duas caixas que estavam à frente e deu um pulo para trás ao se deparar com um par de olhos amarelos e estreitos lhe encarando. 

A criatura não piscava ou mesmo se mexia, porém, seus olhos eram uma das coisas mais vivas que Marisa já vira. Não havia dúvidas quanto a isso. Deixando escapar um grito, deu alguns passos para trás, mantendo o guarda-chuva ainda a sua frente e parou para observar. Sentia-se hipnotizada por aquele par de olhos, mas, aos poucos, foi percebendo o rosto e finalmente o corpo do animal, completamente revestidos de um pelo negro brilhante. Era grande demais para ser um rato. Pequeno demais para ser um cão. 

Viu o rabo se mexer e deu mais um passo para trás, se assustando quando suas costas encontraram a parede fria de gesso. Não havia mais para onde recuar. Toby, que parecia ser capaz de sentir seu medo, voltou a latir do outro lado da porta. A criatura ficou com os pelos eriçados, soltou um ruído e desviou seu olhar amarelento para a porta. Um olhar que parecia humano, de tão concentrado. 

Se não era um rato, aquela coisa devia ser um gato. E ela odiava gatos, seu cheiro nauseante, o excesso de pelos, a língua áspera e asquerosa, além daquelas pupilas estreitas e horripilantes. 

Marisa bateu com a ponta do guarda-chuva no chão, tentando espantá-lo, mas a criatura não mexia nada além do olhar, que vagueava atento por todo o cômodo. Ela não sabia como ele tinha entrado ali, ou mesmo há quanto tempo estava em sua casa. Esse último pensamento a fez estremecer. 

Saiu novamente da garagem, encontrando um Toby irritadiço que a cheirava com força, quase como acusando-a de uma traição. “Eu sei, também não o quero aqui”, respondeu a seus protestos. Pegou uma vassoura e preparou-se para voltar, desviando do cão novamente. 

Bateu a vassoura no chão, acendeu as luzes e gritou, tudo para tentar assustá-lo. Impassível, o gato virou de costas, se embrenhando ainda mais entre as caixas, deixando apenas o volumoso rabo à mostra. Assim ele se parecia ainda mais com um rato imundo. 

Tentou se aproximar, mas não conseguia, sua pele se arrepiava só de pensar em precisar tocá-lo. É claro que ela não queria machucá-lo, só precisava tirá-lo dali. Ele precisava ir embora. Conseguiu, com muito esforço, chegar perto o suficiente para enxotá-lo com a vassoura. Tentou empurrar seu pequeno traseiro, mas não conseguiu nada além de um forte miado. O som entrou e ficou ecoando em sua cabeça. Toby intensificou os latidos, em sua defesa. 

Nervosa, sentia as gotas de suor escorrendo por dentro de sua blusa, saiu novamente da garagem, subiu e alcançou o celular que ficara em cima da mesa. Pensou em ligar para sua vizinha, talvez ela não se importasse em ajudá-la, mas, automaticamente, ligou para ele

Uma voz ainda cheia de sono lhe respondeu no terceiro toque. Ela se enrolou nas palavras, sentindo um misto de vergonha e arrependimento quando ele pediu que se acalmasse e explicasse o que estava acontecendo. Se era urgente? Claro que sim! Respirou fundo e contou, dessa vez devagar, que havia um gato enorme preso em sua garagem. Ele não fez nada além de rir, disse sentir pena do gato e pediu que ela se acalmasse, pois o pobre bichinho era, com certeza, o mais assustado dos dois.  

Desligou o telefone humilhada e com duas sugestões: a primeira era borrifar um pouquinho de água nele, pois gatos não gostavam de se molhar e, a segunda, era deixar o portão aberto para que ele fosse embora sozinho. Que grande ajuda. 

O animal era rápido, saiu correndo pela garagem assim que ela borrifou água no meio das caixas de papelão. Deu uma volta completa e então foi se esconder debaixo do carro. Sua corrida de um esconderijo a outro fora tão eficiente que Marisa continuava no escuro, sem saber se era macho ou fêmea, se ainda era um filhote, ou mesmo se estava ferido. Pelo tamanho – enorme – não parecia ser um filhote, mas parecia bastante magro. 

Ela também sentia pena do bichinho, sabia que ele estava perdido e assustado, mas era mais forte do que ela, simplesmente não podia se agachar e tirá-lo dali. Ela queria ajudá-lo a sair da casa para que reencontrasse seu caminho, mas não conseguia. Torceu para que ele não estivesse ferido, não queria lidar com a culpa de tirar um cadáver de sua garagem. 

Tentou se acalmar para seguir a segunda dica do ex-marido. Subiu e tomou seu café, apesar de não sentir o gosto da comida em sua boca. Tomou banho e se arrumou com os pensamentos ainda presos ao bichano. Cuidou de Toby preferiu deixá-lo trancado dentro de casa. 

Ele ainda estava embaixo do carro quando ela voltou para a garagem. Agora ronronava, provocando-a. O som era lento e arrastado, como um motor velho. Ela apertou as chaves na mão e clicou no botão do alarme, destravando o carro. O animal teve um leve sobressalto com o barulho e as luzes que piscaram no automóvel, porém voltou a se acomodar. 

Marisa sabia que poderia acabar com aquilo de maneira fácil, bastava ligar o carro, e ninguém saberia. Apenas ela saberia, pelo resto de sua vida, tanto quanto sabia que jamais teria coragem de fazer mal a um ser vivo. 

Irritada, pegou novamente o guarda-chuva e deu pancadas na lateral do carro, obrigando-o a sair. Encolheu-se toda enquanto a criatura fazia seu caminho de volta ao ninho, notou que ele já parecia íntimo da montanha de caixas. Deixou a porta aberta, na expectativa de que ele aproveitasse a casa escura e silenciosa para sair pelos fundos, da mesma forma como devia ter entrado.

*

Desnecessário dizer que quase não conseguiu trabalhar naquele dia. Não conseguia prestar atenção no que as pessoas falavam com ela, não reparava em quem lhe dirigia a atenção e cometeu erros mais de uma vez, algo pouco comum. Seu chefe ficou irritado ao receber uma planilha repleta de erros de digitação. Ela se desculpou, dizendo que não dormira bem e estava tendo problemas em casa. Ele sabia do divórcio, é claro. 

No almoço, a comida não descia pela garganta, que parecia arranhada. Largou a marmita pela metade e foi para área de descanso, mas havia um rapaz cochilando sentado em uma cadeira, e ela podia jurar que sua respiração era semelhante à daquele que lhe aguardava em casa. Já começava a sentir-se perseguida. 

A dificuldade para se concentrar acompanhou-a pelo resto do dia e, até chegar em casa, já se sentia exausta. Estacionou em frente ao portão, fechou os olhos e afundou as unhas no volante, com as mãos trêmulas. Apertou um botão no pequeno controle, abrindo o portão automático. Em vão, estreitou os olhos, tentando enxergar no escuro: nada. Manobrou o carro, entrando de ré na garagem. A câmera traseira lhe ajudou a estacionar, porém pouco revelou sobre o indesejado visitante. Talvez ele tivesse ido embora, afinal!

Assim que desceu do carro e bateu a porta, o leve ronronar voltou a ecoar em sua cabeça. Ali, no meio das caixas ainda jaziam os olhos amarelados. Praguejou mentalmente, se perguntando se o bicho não tinha fome. 

Sentiu-se culpada, no entanto, ao se dar conta de que o animal sequer bebera água o dia todo. A contra gosto, subiu, recebeu a festa de Toby, que ficava sempre muito feliz com sua chegada, e foi em direção à pia. Usou um pote velho para encher de água e desceu novamente, equilibrando o líquido em suas mãos e desviando do cachorro que, ainda animado, pulava à sua volta. Na porta da garagem, ele voltou a farejar, se abaixando e empinando o rabo, os pelos traseiros se eriçaram de raiva enquanto ele latia. 

Com dificuldade, afastou-o da porta para poder entrar. Mesmo tendo perdido quase metade da água no caminho, ainda havia o suficiente para que deixasse o pote no chão. Não conseguiu colocar perto dele, não conseguiria se abaixar e muito menos tocá-lo. Então apenas encostou o pote na parede mais próxima e saiu em passos rápidos, sem olhar para trás. 

Pensou em lhe dar leite, ou então um pouco de atum, sabia que ainda havia uma latinha de conserva no fundo do armário, mas teve medo de que, se ele gostasse, poderia querer voltar por mais. Ela não podia se arriscar. 

No banho, passou uns bons minutos debaixo da água, esfregando o corpo, sentia-se mais suja do que o comum naquele dia. Vasculhava seu corpo à procura de pelos ou qualquer cheiro que lembrasse o animal. Mesmo ali, com o barulho da água e a sensação quente em sua pele, se fechasse os olhos, parecia ouvir seu ronronar ecoando pelas paredes. 

Ligou para a casa da vizinha da frente, mas a chamada se esgotou antes que alguém atendesse. Olhou pela janela e viu que a casa estava toda apagada. Sem saber a quem recorrer, entendeu sua sina: seria obrigada a passar a noite com aquele ser asqueroso em sua casa. Prendeu Toby dentro de casa e deixou a porta que separava a garagem do quintal aberta, na expectativa de que durante a noite o animal fizesse seu percurso de volta e sumisse da mesma forma como havia aparecido. 

Deitada na cama, não conseguia fechar os olhos sem ver o olhar amarelo a sua frente. Sentiu-se ridícula por levantar e acender a luz do corredor. Mas naquela noite não conseguiria dormir no breu. Em silêncio, ouvia as batidas do relógio e o estalar da geladeira no andar de baixo, até que de repente, começou a escutar também o mesmo som de motor velho que lhe perseguira durante todo o dia, era como se ele estivesse rindo dela. 

Sentia-se fraca, impotente, não sabia como podia lidar com tantas coisas sozinha e, ainda assim, ficar sem ação diante de algo tão insignificante. Era vergonhoso! Mas o embaraço não era tão grande quanto o asco que sentia só de pensar em tocá-lo. Tentou imaginar sua mão nos pelos ensebados do animal e não conseguiu. Porém, virou refém das imagens que invadiram sua mente: sabia que o gato ainda estava lá, provavelmente lambendo o próprio corpo com a língua áspera e sujando toda sua casa de pelos negros. O ronronar ficou mais alto e ela se encolheu na cama, apertando as cobertas em torno do corpo. Olhou para os lados, mesmo sabendo que não havia nada ali. Ele estava longe, tinha de estar. Ela conferira três vezes se a porta da cozinha estava trancada à chave. E sabia também que nenhuma janela ficara aberta.  

Olhou para Toby, que respirava fundo, em um sono pesado, encolhido em sua caminha. Fechou os olhos novamente, sentindo-os pesados, e teve ainda mais um vislumbre dos olhos amarelos antes de finalmente conseguir adormecer. 

*

Agradecida pela chegada da manhã, escovou os dentes com pressa, olhando pela janela, como se esperasse encontrar o animal parado no meio da rua. Nada. Calçou as pantufas e desceu direto para a garagem. Toby estranhou a quebra do ritual matinal de sua dona, resmungou por não poder descer e fazer xixi perto do ralo, como sempre. 

Ela seguiu até a garagem e nem precisou acender a luz para encontrá-lo lá. Paralisado na mesma posição, com o olhar fixo nela. Ele vencera e os dois sabiam disso. Sentiu seus olhos arderem de raiva e segurou as lágrimas que tentavam cair. Secou uma solitária, virando-se de costas para que ele não a visse. 

Sua primeira atitude foi ligar novamente para o ex. Ele gargalhou ao telefone e ela podia imaginá-lo jogando o pescoço para trás ao balançar a cabeça, como fazia quando achava graça em algo.

Cerca de uma hora depois, ela desceu para lhe abrir a porta. Se trocara, vestindo uma blusa nova e calças jeans, tentando parecer casual, mas não casual demais. Aquilo não era um encontro, afinal. Difícil dizer quem estava mais empolgado com sua chegada, Toby ou ela. 

Ofereceu-lhe uma xícara de café e então desceram para fazer o que precisava ser feito. Ela deixou que ele fosse na frente, algo que ele notou com humor. Porém, ao chegar na garagem, ele acendeu a luz, se agachou, chamou, e nada, não havia nenhum sinal do felino. 

“Mas ele estava aí, eu juro!” disse e lhe contou sobre como seguira em vão suas dicas, molhando as caixas e deixando a casa aberta. Contou como ele havia arranhado o papelão e sem parar de encará-la o dia todo. O ex-marido, cético, apenas balançou a cabeça, dizendo que não havia nada ali, nenhum arranhão ou marca nas caixas intactas da filha, nenhum pelo para contar história. 

Ele lhe encarou, olhando no fundo de seus olhos, e perguntou se ela tinha mesmo certeza do que estava dizendo. Seu olhar a feriu mais do que um dia inteiro sendo encarada pelas pupilas estreitas do animal. Para evitar maiores constrangimentos, ele disse, brincando, que o animal devia ter finalmente se cansado dela e encontrado a saída da casa. 

Na hora de ir embora, pediu que ela não lhe ligasse a menos que houvesse uma emergência de verdade, pois ele andava bastante ocupado com o trabalho e não tinha tempo a perder. Além do quê, já era hora dela se virar sozinha, fazia quase seis meses que ele saíra de casa. Virou as costas, entrou em seu carro e saiu, sem olhar para trás.

Marisa sentia-se humilhada. Derrotada, outra vez. 

Entrou, levou a louça até a pia, tentando se concentrar nas tarefas domésticas, para manter a mente ocupada. Foi então que ouviu um ronco, mais um e mais outro. O velho motor foi ganhando vida novamente, primeiro baixinho, porém aumentando gradativamente. Desceu, afobada, as escadas, com Toby em seu encalço. Entrou na garagem e foi correndo até as caixas, afastou uma após a outra, até enxergar a parede ao fundo. Nada. O barulho ficou mais alto, mais perto de suas pernas, então se virou para trás e a última coisa que viu foi o amarelo vivo. 

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Janela

Da janela do meu apartamento vejo seu escritório. Eu estudo e ele trabalha. Quando estou me levantando, ele já está batendo ponto. Tem dias que chego em casa e sua janela ainda está acesa. Vejo-o assistindo reuniões, falando no celular e teclando furiosamente em seu computador. Sei a hora em que seu almoço chega, quase sempre pedido do restaurante da rua detrás, com exceção das quintas, quando ele sai para almoçar fora. Uma hora inteira sem vê-lo. 

Acompanho sua rotina enquanto ele nem sabe que faz parte da minha. Por mais de uma vez já me guiei por seus horários. Mesmo sem saber quem ele é, ou por quê está lá, é reconfortante ter a certeza de que estará, me sinto menos solitária em sua companhia. 

Levantei-me da mesa, ainda com a caneca em mãos e fui até a janela, afastei as cortinas e lá estava ele em minha paisagem diária. Abri a porta, saindo para a sacada e fiquei observando-o digitar enquanto a fumaça do café subia em espirais e o cheiro me esquentava por dentro.  

Terminei a bebida e entrei novamente, acrescentando a caneca à louça já acumulada na pia, e corri para o banho, pois já estava atrasada. Consegui passar boa parte do dia sem pensar nele, as aulas da manhã foram cheias, usei o intervalo para terminar um trabalho que seria entregue no último período e perdi valiosos minutos na fila da impressão. 

Almocei com uma colega, falamos sobre quase todas as pessoas de nossa turma e então fui embora. Apenas na volta, já perto de casa, foi que ele invadiu meus pensamentos. Será que ainda estava no escritório? 

Com o tempo, fui pegando um hábito estranho: eu gostava de imaginá-lo nas mais diferentes situações. Era como um personagem que habitava meu imaginário e eu adorava jogá-lo diante de um cenário para ver como ele se virava. Em geral tínhamos as mesmas opiniões, apesar de eu discordar de sua conduta por uma ou duas vezes. 

Cheguei em casa, cumprimentei o porteiro e parei para pegar uma encomenda: meus hidratantes novos finalmente haviam chegado. Assinei meu nome no já surrado caderninho da portaria, logo acima da dona Odete, que recebeu seu pedido da farmácia. Me despedi e segui até o elevador, que estava parado na garagem, no segundo subsolo, e lá ficou por longos três minutos. 

Fiquei encarando meu reflexo na porta do elevador, até que ela se abrisse. Entrei, quase em piloto automático, falando um “boa noite” sem nem olhar para meu companheiro de subida. Meus olhos miravam o painel de botões que indicava os andares. Apertei o meu e me posicionei, de costas para a porta. Só quando ela se fechou, olhei para frente e o vi pelo espelho. Ali estava meu amigo sem nome, dessa vez de pé, de perto, com cheiro de loção pós-barba e até mesmo com voz, afinal, ele murmurou algo em resposta. 

Antes que eu conseguisse pensar em qualquer coisa para dizer, o elevador parou um andar abaixo do meu e ele desceu, ajeitando a mochila nas costas. Tentei ter um vislumbre de sua casa, mas no momento em que ele abria a porta, a do elevador se fechava. 

Saltei do elevador quando as portas abriram novamente. Entrei rápido e fui correndo até a sacada. As luzes do escritório estavam apagadas, tudo escuro e sem vida lá dentro. Cheguei bem perto da grade, apoiando a cabeça na tela de proteção e olhei para baixo: luz, som de risadas, cheirinho de comida. 

Me afastei, voltando para dentro e desabando no sofá. Eu nunca o imaginei tão perto antes. Não sabia o que fazer, agora tudo parecia diferente, eu podia espiar uma pessoa estranha em seu escritório, mas não devia fazer isso com um vizinho, certo? O que ele faria em meu lugar?

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Liberdade

Depois que nós terminamos – ou melhor, que ele me deixou – todos os amigos tiveram a sensibilidade de perguntar se eu gostaria de cancelar nossa viagem, mas não seria justo acabar com a diversão do grupo por causa de um problema meu. Nosso. Mais meu, aparentemente. Nunca fui do tipo que gostasse de ser o centro das atenções. Além disso, no fundo, eu tinha esperanças de que até lá nós já tivéssemos nos resolvido e reatado o namoro. 

Minhas expectativas foram frustradas e, dois meses depois, fui passar as férias de verão no sítio que alugamos no interior com os amigos, ele e sua nova namorada, Vanessa. Seriam dias longos e dolorosos, mas eu não podia fraquejar. 

A ideia de acender a fogueira foi dele, o mais empolgado do grupo. Havia um espaço no meio gramado, feito de alvenaria e, o dono da casa autorizou que usássemos um pouco da lenha que havia encostada no muro dos fundos. Então, após um belo dia na piscina, todos tomamos banho, nos arrumamos e fomos jantar fora: cachorro quente no gramado, sob a luz do luar. Diferente da cidade, era possível ver as estrelas no céu, uma noite no campo era um presente para quem estava acostumado a ter apenas prédios como paisagem. 

No interior, as noites eram sempre frias, apesar da alta temperatura durante o dia, então estávamos enrolados em nossas blusas e ansiosos pelo calor do fogo. Os garotos montaram uma pequena estrutura com a lenha e levaram algum tempo até conseguir fazer o fogo pegar, gastando mais da metade da embalagem de álcool no processo. Quando conseguiram, a fogueira ganhou vida em segundos. 

Ficamos todos amontoados em volta, querendo sentir um pouquinho do calor de perto, alguns tirando fotos, outros já tentando improvisar espetos para cozinharmos as salsichas ali mesmo. Logo as conversas paralelas começaram, todos foram se ajeitando em pequenos grupos em volta do calor. E foi então que Mari apareceu com um bloquinho e algumas canetas na mão, sua proposta era fazermos um ritual de libertação, que consistia em cada um escrever em uma folha em branco um problema ou história que gostaria de deixar para trás, era preciso escrever enquanto mentalizava todas as energias negativas sobre aquilo, a ideia, segundo ela, era transferir toda a mágoa e emoções para o papel. Em seguida, dobraríamos nossos pedaços de papel e atiraríamos na fogueira. O fogo terminaria de cumprir o processo de purificação, nos renovando. Ignorando alguns risinhos, Mari disse que aquelas férias mudariam nossas vidas para sempre. 

Alguns reviraram os olhos, Gabriel foi quem mais riu da ideia, mas parou assim que viu sua namorada estendendo a mão para pegar uma caneta. Em pouco tempo todos se contagiaram e acabaram aceitando a brincadeira, afinal não faria mal algum tentar. 

Cada um recebeu uma folha e fomos revezando as canetas, enquanto alguns pensavam e demoravam a se decidir, outros pareciam já saber exatamente do que queriam se livrar. Eu sabia, é claro, só demorei para conseguir escrever no papel. Encarei minha letra trêmula antes de dobrar o papel e atirar ao fogo. Fiquei observando o papel sendo consumido pelas chamas até desaparecer. 

Juntos, queimamos angústias, medos e parte do nosso passado. Depois que todos fizeram, as brincadeiras e conversas paralelas voltaram a acontecer, alguém entrou para buscar mais cerveja e não tocamos mais no assunto. Eu me perguntava se mais alguém sentia um nó na garganta como eu. Ele ria, sem saber que era seu nome que queimava entre as chamas, era dele que eu precisava me purificar. 

Seguimos noite adentro, com comilança, risadas e cantoria. Tínhamos um violão, muitos cantores amadores e um batucador profissional, o suficiente para nos entreter por algumas horas. Aos poucos, cada um foi entrando ou arrumando um canto no grande quintal para se deitar e observar as estrelas, alguns novos casais se formaram. Eu me deitei perto de Mari e ficamos conversando sobre algumas árvores que víramos mais cedo no terreno: pé de manga, jabuticaba e até um pequeno milharal. Combinamos de colher algumas frutas no dia seguinte. 

A conversa me distraiu o suficiente para perder os dois de vista e, quando fui me deitar, não os vi em canto algum. Fiquei parada em frente à fogueira, que já diminuíra consideravelmente, mas ainda irradiava calor. Assisti à dança das chamas, que consumiam a madeira, me sentia hipnotizada por aquela imagem, a energia daquele calor. Balancei a cabeça e ri, me sentindo boba por ter deixado todo aquele papo de energia me contagiar. 

Fui até o quarto que estava dividindo com outras meninas, peguei minha necessaire e pijama dentro mala e segui até o banheiro. O cheiro de fumaça estava impregnado em meu cabelo, mas tive preguiça de tomar outro banho, então só escovei os dentes e me troquei antes de voltar para o quarto deitar em uma das camas duras e desconfortáveis que tínhamos a nosso dispor. O travesseiro era bem baixo, de tão velho e surrado que estava, ao que tudo indicava, a noite seria longa.  

Eu simplesmente não conseguia dormir. Me virei de um lado para o outro na cama, contei as peças de azulejo na parede, olhei cada mancha no teto e encontrei uma pequena teia de aranha na quina. Ouvia, com inveja, uma respiração alta na cama ao lado. Ouvi quando mais alguém entrou no quarto e se deitou. E nada, meus olhos simplesmente não se fechavam. Não conseguia parar de pensar nele e em nós. Talvez fosse parte do processo, talvez eu precisasse lembrar de tudo primeiro, mais uma vez, para então conseguir esquecê-lo, para então deixar nossa história ir embora junto com as cinzas. Sentia calor, depois frio, e não conseguia encontrar uma posição confortável, meu estômago doía, revirando o jantar lá dentro. Não sei se tive febre, mas sentia minhas mãos frias, suando. 

Acho que finalmente adormeci, ou só fechei os olhos por um instante, não saberia dizer, mas abri-os novamente quando senti um cheiro forte de queimado entrando em minhas narinas, não é possível que tudo aquilo viesse do meu cabelo. Olhei pelas frestas da janela e vi a fumaça começando a entrar. Sentei-me na cama, olhando mais atentamente. 

“Fogo!”, gritei, e saí correndo para acender a luz, acordando todas as meninas em meu quarto. Acho que não conseguiria descrever os momentos que vieram em seguida, porque mal me lembro de algo que faça sentido. Ouvimos gritos, todos saíram correndo, batendo em outras portas, tentando alertar a todos, alguns lembraram de arrastar malas para fora, outros, como eu, saíram só com o pijama no corpo. Tropecei em meus próprios pés no caminho para fora e alguém me ajudou a levantar. Saímos correndo. 

Alguém ligou para os bombeiros, mas eles demoraram a aparecer, afinal, estávamos isolados no meio do mato. Assistimos a casa pegar fogo, as chamas lambiam as paredes e labaredas levantavam alto, cuspindo telhas para cima, estalos de madeira eram a trilha sonora de nossos gritos por socorro. Havia muita fumaça, senti dor em meu peito e comecei a tossir, os olhos lacrimejavam e aquele terror parecia não ter fim.

Mas então o resgate chegou e nos levaram embora dentro de alguns carros, deixando uma equipe para trás, tentando apagar a grande fogueira que virara a casa. Passamos as horas seguintes recebendo atendimento e sendo interrogados. Parece que alguém não percebeu que a fogueira continuou acesa e a brasa caiu na grama, espalhando o fogo, que logo tomou conta do lugar. Talvez o excesso de álcool usado no acendimento também fosse culpado. 

Demorei para perceber que Gabriel e Vanessa não estavam conosco, quando notei, olhei para Mari, desesperada, mas ela não entendeu. Pouco depois veio a notícia que nos confirmou: o casal ficou para trás, morreram trancados no quarto. Na correria ninguém notou que eles não estavam lá, e os bombeiros não sabem se eles permaneceram dormindo ou se tentaram sair, mas não conseguiram. Seus corpos foram encontrados ainda na cama. 

De manhã, fomos levados de volta à casa, que já nem podia mais ser chamada assim. Avistamos os destroços, conseguimos recolher alguns poucos pertences e ficamos todos paralisados, observando o que restara de nossas férias. Eu ainda vestia pijama e chinelos, nem meu celular estava comigo, não sobrara nada meu ali. 

Olhei para o gramado e vi o local onde a fogueira começara. De longe, avistei o pequeno pedaço de papel perfeitamente dobrado em meio às cinzas. Caminhei até lá, sem que ninguém notasse minha ausência, abaixei e peguei o papel, ainda quente, e guardei no bolso. Eu não precisava abrir para saber o que estava escrito ali, eu sentia dentro de mim, finalmente estava livre.

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Castelo dos Sonhos

Acordei sentindo uma brisa passando pelo quarto, um ar frio tocando a ponta do meu nariz e tudo o que não estava protegido embaixo do cobertor pesado e felpudo. Me estiquei na cama macia, sentindo meu corpo despertar aos poucos, mexi os pés, estiquei os braços para os lados, sem sentir as bordas da cama. Não queria abrir os olhos, então, apertei-os, lutando contra a claridade que tentava atravessar minhas pálpebras e tentei para voltar ao sono, queria retornar ao sonho exatamente do ponto em que parara, como se pudesse apertar o play naquele filme novamente.

Me virei para um lado, puxei o cobertor para cima, tampando até a cabeça. Virei para o outro, me encolhendo em volta de mim mesma. Mas era tarde, já estava acordada. Repassei o sonho na cabeça, disposta a imaginar uma continuação, já que não poderia mais ser espectadora de meu inconsciente. Me vi novamente no baile, com um vestido longo azul, a saia rodada com uma fina camada de tule repleta de pequenos pontos de brilho, a maquiagem forte em torno dos olhos os realçava, o gloss de efeito molhado brilhava nos lábios.

Talvez minha parte preferida fossem os sapatos prateados, que tinham o salto na medida certa, não apertavam e, mesmo após uma noite inteira em pé, não havia sequer uma bolha ou calo me incomodando, só podia ser imaginação mesmo.

O cabelo caía em ondas até meus ombros, mais curto do que estava acostumada, mas eu me sentia tão linda que simplesmente não mudaria nada naquela noite. Na verdade, mudaria apenas o tempo: adoraria fazê-lo parar. Gostaria de poder viver ali, naquela festa, naquele castelo. Sim, pode me chamar de boba, mas era isso o que aquela mansão parecia. O jardim que eu via lá embaixo, pelas grandes janelas do salão só podiam ser descritos como vindos de um sonho.

Eu não podia terminar aquela noite senão desta maneira, em uma cama confortável, sem hora para acordar e com ele ao meu lado. Aí começava a parte da imaginação, já que eu estava sozinha em minha cama.

Gemi, e finalmente tomei coragem para abrir os olhos e enxergar a realidade. A luz me invadiu, causando um arrependimento instantâneo. Pisquei algumas vezes para me acostumar e então olhei para frente. O vestido, que mais parecia de uma fada, estava lá, azul e com todo o brilho que eu me lembrava. Os sapatos descansavam no chão e uma pequena bolsa estava em cima da cadeira. Passei as mãos sobre o cobertor e não o reconheci como meu. Olhei em volta e para mim, apenas para constatar o óbvio: aquela não era minha cama, muito menos o meu quarto.

Eu vestia uma camisola preta, rendada que não cobria muito do meu corpo, não era à toa que sentia frio. Olhei para os lados, só para ter certeza de que estava sozinha e então dei um beliscão em meu braço: doeu de verdade. Mas o que era verdade, afinal?

Sentei-me na cama e olhei para baixo, onde encontrei duas pantufas de pelúcia aguardando para um encaixe perfeito em meus pés. Havia também um roupão apoiado na cabeceira da cama. Enrolei-o em volta do corpo e parecia que estava carregando um cobertor comigo. Levantei e segui até a janela. Lá estava meu jardim dos sonhos, a vista mais bonita que eu já vira em uma manhã, os raios de sol cortavam o horizonte, apesar da baixa temperatura. Fiquei apoiada, olhando a imensidão a minha frente. Olhei para as janelas ao lado, todas fechadas.

Fiquei ali até ouvir o barulho de chave girando na fechadura atrás de mim. Sua voz chegou aos meus ouvidos junto com o cheirinho quente de café que invadiu todo o quarto.

– Já está acordada? Saía daí ou vai se resfriar.

– Achei que eu estivesse sonhando – perguntei, me virando e encarando-o de frente.

Ele também vestia um roupão e pantufas semelhantes às minhas, mas, ao contrário de mim, parecia se sentir realmente à vontade ali.

– A noite passada pode ter sido, mas espero que todos os nossos dias sejam assim a partir de agora.

Ele deixou a bandeja que carregava apoiada na cômoda ao lado da cama e se aproximou, me envolvendo em um abraço apertado.

Respirei seu perfume, o mesmo de ontem à noite. Não era um sonho, afinal.

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O Colecionador de Histórias

Caio já estava acostumado, não conformado, mas acostumado. Todos os dias fazia tudo sempre igual. Enrolava por até vinte minutos depois do despertador já ter tocado. Se arrastava até o banheiro e deixava que a água corrente em seu corpo terminasse o trabalho de lhe acordar. Depois, meio vestido, mas ainda de pantufas, seguia para a cozinha e ligava a cafeteira. Enquanto ela fazia seu trabalho matinal praticamente sozinha, ele lavava a louça da noite anterior e tentava se livrar dos vestígios que restassem pela casa. Jogava latas de cerveja fora, cheirava o resto de pizza e ponderava se aquilo servia para mais uma refeição ou não.

Toda quinta-feira, suas noites eram reservadas a jogar videogame com os amigos. Faziam diversas competições, às vezes presenciais, mas, quase sempre, online. Era mais fácil interagir com pessoas que se pareciam tanto com ele. Nada mudava seu compromisso semanal. Esse mês, estava em segundo lugar, e pretendia avançar na próxima rodada.

Fora isso, por mais que não fosse grande fã de uma rotina matutina, funcionava melhor para cumprir suas obrigações pela manhã, antes do trabalho, pois sabia que depois seria tragado por oito horas de uma função maçante e repetitiva – dez, se considerasse o trajeto, enlatado junto com outras tantas pessoas dentro de um estreito vagão a caminho de seus trabalhos entediantes e mal remunerados.

Depois de dez horas sentindo-se massacrado, à noite ele não conseguia mais ser produtivo. Só queria beber alguma coisa, jogar e relaxar. Às vezes pedia pizza e ficava assistindo vídeos em seu computador, outras vezes ficava deitado no sofá maratonando séries. E, quase sempre, se masturbava.

Fazia um ano e meio que ele fora contratado para integrar o time de TI de uma empresa de seguros. Em geral o trabalho era fácil, uma vez acostumado ao sistema, não era grande desafio resolver eventuais bugs, a pior parte era lidar com o setor de experiência do usuário, detestava quando precisava atender chamados e responder solicitações dos clientes. Afinal, o que havia de tão difícil em mexer em um computador?

Mas, não havia nada como ser taxado como o “cara do TI”. Tinha vontade de rir de desespero quando alguém aparecia em sua sala para pedir ajuda com seu computador ou então para “dar uma olhadinha” na impressora que misteriosamente parara de funcionar. Ele se sentia como um atendente de telemarketing, perguntando “você já tentou reiniciá-la?”. Sem dúvidas, lidar com pessoas sempre fora a pior parte.

Mas, com aluguel e contas para pagar, desde que brigou com a mãe e resolveu sair de sua casa, ele se submetia a uma série de infortúnios em nome do emprego e, principalmente, do salário. Por isso, repetia a si mesmo que aprender a programar fora a melhor coisa que fizera em sua adolescência. O sonho de crescer e se tornar um escritor estava trancado na gaveta já havia alguns anos. Com o ritmo de vida que vinha levando mal tinha tempo para ler, quem diria colocar suas próprias ideias no papel.

E, também, trabalhando o dia inteiro e sem tempo para viver experiências novas, sentia não ter material – ou tempo – para escrever uma história que pudesse despertar o interesse de alguém, não com tanta coisa boa já produzida no mundo. De que valiam suas histórias quando cada pessoa já estava ocupada escrevendo e vivendo a própria.

Apesar da remuneração não ser tão ruim, a verdade é que mal dava para fechar o mês, foi isso que o incentivou a aceitar um plano B, ou um “bico”, como costumava chamar. De tanto mexer com computadores, tornou-se expert em recuperação de arquivos e, como bom paranoico que era, não fazia nada sem distribuir uma boa dose de backups por aí: sistemas em nuvem e hds externos eram seus melhores amigos.

Por ser conhecido na empresa como o tal “cara do TI”, os colegas também começaram a procurá-lo para resolver problemas em seus dispositivos pessoais. E, já que precisaria trabalhar e socializar com aquelas pessoas após o expediente, resolveu cobrar por isso. Em pouco tempo foi indicado de uma pessoa a outra e conseguiu um volume considerável de clientes.

Em geral, recebia máquinas infestadas de vírus e pedidos desesperados de ajuda, pois sempre havia uma foto ou documento importante demais para ser apagado, por isso, formatar nunca era uma opção. Trabalhando com uma boa margem de sucesso, em geral conseguia recuperar as informações do hd e só depois formatava a máquina, devolvendo-a limpinha, com seus preciosos arquivos intactos. Inconformado com a falta de precaução das pessoas, também começou a fazer uma espécie de consultoria de backups. Fornecia opções de sistemas e locais, e ensinava cada um a criar seus próprios métodos de salvar e proteger arquivos para a posterioridade.

Era de se estranhar, para alguém que se irritava tão facilmente em atender pessoas no dia a dia do trabalho, mas a verdade é que era divertido ver como as pessoas tinham tanto apego a arquivos de alguns kbytes. A quantia de fotos tremidas que as pessoas tratavam como tesouros era um mistério a ser estudado. Mas ele, apaixonado por bancos de dados, se divertia tratando dos arquivos e espalhando cópias de tudo na rede.

Aos poucos, por mais que não quisesse admitir, começou a se interessar pelas pessoas cujos computadores consertava. Havia um código de ética instalado em sua cabeça, e assim, tentava manusear os arquivos sem abri-los. Quase nunca havia a necessidade de abrir um documento ou foto, só precisava garantir que conseguiria recuperar tudo, eram dados, o conteúdo pouco importava. Mas, com tantas noites solitárias em casa, começou a traçar perfis de seus clientes. Alguns gastavam um número inexplicável de gigas apenas para armazenar fotos. Fotos de quê? Animais fofinhos? Comida? Paisagens? Talvez selfies? Foi assim que ele começou a dar uma espiadinha aqui, outra ali, apenas para garantir que estava fazendo um bom trabalho, para que nenhum arquivo lhe escapasse antes da formatação irreversível da máquina.

Mas os fragmentos que os computadores lhe contavam só serviam para lhe despertar ainda mais curiosidade acerca de seus donos. O que uma máquina revela sobre seu usuário? O que um conjunto de arquivos ajuda a entender sobre alguém? Foi assim que começou a pesquisar pelo nome de cada um na internet, era fácil descobrir seus perfis em redes sociais e transitar por praticamente tudo o que houvesse de informação pública compartilhada. A internet e suas redes, era muito fácil pescar um peixe.

Seu primeiro desvio aconteceu por culpa de um artigo acadêmico. O amigo de um rapaz que trabalhava com ele lhe procurou, através de boas recomendações: estava escrevendo sua tese de doutorado e o computador lhe deixou na mão. Ele estava desesperado e daria qualquer coisa para reaver seus arquivos. Combinaram um valor e ele passou em sua casa para deixar o laptop. Caio pediu a já habitual pizza de muçarela com pepperoni e começou o trabalho. O doutorando cometera um erro de principiante ao clicar em um link de um e-mail totalmente suspeito e infestar a máquina de vírus. Ah, a curiosidade humana!

E, por falar em curiosidade, começou a abrir os artigos acadêmicos usados de referência para a tese. Apenas por precaução, para conferir se nada fora corrompido. A tese escrita pela metade já estava repousando seguramente na pasta de recuperados. Um dos textos lhe chamou a atenção, algo sobre os hábitos de consumo das pessoas e uma ousada projeção sobre em quantos anos o comércio físico seria completamente substituído pelas vendas online e marketplaces. Ele levou o artigo para a nova pasta e criou uma cópia em sua própria máquina, para ler com mais calma em outro momento. Não viu nenhum problema naquilo, afinal era um artigo já publicado e acessível. Ele apenas se poupou o trabalho de procurá-lo novamente na internet.

Pouco tempo depois, em uma noite particularmente solitária, estava consertando a máquina de uma das meninas da recepção quando abriu sua pasta de fotos. Foi impossível resistir a tantos álbuns! O que ela tanto guardava ali? Acontece que ele acabou esquecendo de apagar uma ou duas fotos de sua máquina depois de concluir o trabalho no computador dela. Talvez tenham sido mais, o fato é que algumas fotos ficaram ali perdidas em uma pasta de seu próprio computador. E foi assim que suas pequenas transgressões começaram a evoluir.

Organizado como era, criou uma planilha com os dados dos donos das máquinas, as especificações das mesmas e o valor recebido por cada serviço. Depois, um tanto quanto ousadamente, criou pastas e um sistema de categorização para os arquivos que ficavam eventualmente esquecidos em sua máquina, cópias de fragmentos da vida de outras pessoas.

Foi em um sábado que fez seu primeiro exercício. Pegou a foto de um grupo estranho de pessoas e ficou observando por algum tempo. Conhecia apenas a pessoa que tirara a foto, a mesma garota que lhe pagou para ter aquelas fotos de volta. Ficou olhando a foto, pesquisou seu perfil nas redes sociais e tentou imaginar que história aquela foto contava, o que havia para além daquele arquivo de dois mega contrabandeado em seu computador. Abriu um documento novo e ficou encarando a tela em branco à sua frente até começar.

Criar aquela história foi um exercício surpreendentemente prazeroso. Tinha um quê de transgressão misturado com aventura, sem contar a satisfação de sentir seus dedos desenferrujando a cada toque nas teclas. Fazia tempos que não escrevia nada e, de repente, era como se aquela garota estranha lhe trouxesse de volta à vida.

E assim foi avançando, usando o que conhecia daquelas pessoas para criar mundos, situações e personagens. Aos poucos até deixou de se importar com o trabalho investigativo – stalker – na internet. Parecia que quanto menos soubesse da pessoa, melhor sua versão ficava. Ele só precisava de conteúdo, pedaços de uma história real que servissem como gatilho para suas próprias alternativas e finais. Caio gostava de suas versões.

Como não podia deixar de ser, guardava seus textos, bem como as devidas referências, em diversos backups espalhados em seu computador, em sistemas de nuvem gratuitos e pagos. Precaução nunca era exagero, esse era o seu lema.

No final do ano, Alessandra, uma corretora de vendas, lhe procurou, desesperada, pois seu sobrinho derrubara seu computador no chão e, além da tela trincada, agora o dispositivo não queria ligar. Todas suas fotos estavam ali, todo seu material de trabalho, inúmeros arquivos importantes, praticamente toda sua vida pertencia àquela máquina! Ele pensou em recusar o trabalho, pois no final daquela semana entrariam em recesso e ele passaria duas semanas sem precisar encontrar nenhuma das caras semi-conhecidas do trabalho. Mas ela parecia realmente desesperada, então algo nele cedeu.

Como a tela havia estragado, ele passou o hd da moça para outro aparelho e passou algumas horas realizando a extração de arquivos, foi dormir e deixou a máquina trabalhando durante toda a noite. Na manhã seguinte, fez sua cópia pessoal dos arquivos, para mais tarde, e salvou tudo o que seria devolvido para Alessandra em um hd externo, que ela poderia plugar em qualquer máquina para reaver seus tão queridos arquivos: fotos, planilhas, apresentações de slide e muitas músicas pirateadas da internet. Aparentemente, ela ainda frequentava sites de torrent para baixar músicas. Em pouco tempo seria considerada vintage.

Acabou se atrasando para o trabalho porque tomou café da manhã olhando as fotos da última viagem à praia que a moça fizera com três amigas. Talvez uma delas fosse sua prima, pois também aparecia nas fotos de família do último natal.

Chegando na empresa foi direto para sua sala e só pôde encontrá-la no final do dia, quando lhe entregou o pequeno aparelho embrulhado em uma sacola plástica e a velha máquina quebrada. Ela abriu um sorriso enorme e praticamente pulou em seu pescoço, em um abraço desengonçado de agradecimento. Após o que pareceu muito mais tempo do que os de fato seis segundos, ela se afastou, com um sorriso tímido no canto da boca, agradeceu novamente.

– Caio, muitíssimo obrigada! Você salvou a minha vida, tudo que eu tenho está aqui.

– Até que foi fácil, como eu te falei, o que estragou foi a máquina, mas os arquivos estavam intactos. Agora, se você quiser a gente se senta para conversar qualquer dia e eu te explico mais sobre formas de dar mais segurança a seus arquivos.

– Sim, os backups, né? Eu quero sim, por favor. Você está livre na sexta? Podemos conversar aqui depois do trabalho, ou vamos lá no Astor e nos sentamos para bater um papo e você me explica tudo isso um pouco melhor.

Ela estava lhe chamando para ir a um bar depois do expediente? Foi difícil conter a sensação quente que percorreu seu corpo. Alê não era de se jogar fora, ainda mais depois de ver todas aquelas fotos dela dentro de biquinis.

– Claro, como for melhor para você.

– Ótimo, nos encontramos por aqui e então decidimos. Agora deixa eu ir que já estou atrasada para a aula de pilates. Ah, já fiz o depósito do seu pagamento, deve cair na sua conta amanhã, você confere?

– Obrigado.

Ela se inclinou para lhe dar um beijo na bochecha como despedida e saiu animada da sala segurando o notebook como se fosse uma pasta em suas mãos.

Aula de pilates, quintas às 19 horas. Ele sabia, é claro. Viu o contrato de matrícula escaneado entre seus arquivos.

Foi para casa um tanto quanto curioso e aflito com a perspectiva de um encontro no dia seguinte, o último dia antes do recesso de fim de ano. Não que fosse um encontro, é claro.

Porém, para sua extrema decepção, Alê cancelou com ele no dia seguinte, por uma mensagem um tanto quanto vaga. Aquilo incomodou mais do que deveria e ele trabalhou com um humor ácido, contando os minutos para poder ir embora e ficar duas semanas afastado daquele lugar e daquelas pessoas.

*

Após o recesso, seu lema era “Ano novo, vida nova” e passada a mágoa com Alessandra, Caio voltou tranquilo ao trabalho e sua tediosa rotina. Um pouco de descanso lhe fizera bem, as miniférias e a virada do ano na praia com os amigos também. “Amigos” talvez fosse um exagero, ele conhecia apenas os dois ex-colegas de faculdade, Pedro e Diogo. Pedro os convidara para uma festa de réveillon na casa de praia da família no litoral norte. Foram dias agitados, com quinze pessoas na casa. Ele conheceu Laís, com quem passou algumas noites. Mas nada além disso, um amor que não sobreviveu à subida da serra, sentimento que aparentemente era mútuo.

Logo no primeiro dia recebeu um recado de Alessandra pedindo para lhe encontrar e fazendo um convite para almoçarem juntos. Sem motivos para negar, ele foi até o pequeno restaurante por quilo onde costumava gastar todo seu vale refeição e ficou sentado esperando pela moça, que atrasou exatos sete minutos.

Se cumprimentaram com um meio abraço constrangedor e ela lhe desejou um feliz ano novo, ao que ele retribuiu e fez sinal para que ela se sentasse na cadeira a sua frente.

– Olha, Caio. Eu te chamei aqui porque…

– Quer beber alguma coisa? – ele a interrompeu, chamando uma garçonete

– Não, obrigada – ela pareceu não gostar da interrupção – Bem, eu não aguento isso, vou direto ao ponto. Naquele dia em que conversamos, assim que cheguei em casa, peguei o computador de minha irmã emprestado para dar uma conferida nos arquivos, eu estava tão feliz por saber que eu não havia perdido nada… Mas o que havia lá dentro, aquele conteúdo não era meu. Ou seu. Era muita gente, muita gente mesmo, muito mais do que eu gostaria de ter visto. Ah, sim, também tinha algumas coisas minhas ali dentro. Você pode me explicar? Porque eu acho que já entendi, mas eu quero mesmo te dar uma chance, espero estar errada.

Ele arregalou os olhos, depois desviou-os para o teto, pois era impossível continuar encarando-a. Ela ficou parada também, assistindo enquanto ele processava a informação sobre a troca dos backups.

Ele abriu a boca, fechou, abriu de novo e finalmente gaguejou. Parecia não encontrar palavras.

– Alê, eu posso explicar. É só… não é nada – disse, abaixando a cabeça.

– Tem que ser alguma coisa. Você é uma espécie de psicopata? Por que guardar todas aquelas informações sobre as pessoas? Por que ficar com fotos e documentos que não são seus? Isso é roubo, é crime, sei lá! É errado. Eu estou em perigo ou algo assim? Você vai me perseguir ou sequestrar alguém da minha família, porque de repente parece que você sabe demais sobre mim, e eu não sei nada sobre você!

– O que você quer saber?

– O motivo de tudo isso. Isso é… é doentio, Caio!

– Eu escrevo.

– O quê? – ela perguntou ofegante, num quase grito bem agudo.

– Começou por curiosidade, eu deixei um artigo em minha máquina para ler depois, um artigo publicado, disponível na internet, não foi roubo, como você colocou, nem nada. E depois, eu comecei a ficar curioso, ficava tentando imaginar quais eram as outras peças daquele quebra-cabeças que a pessoa me trazia. Sim, porque todos os documentos nos contam algo sobre seu dono, mas o que mais aquela pessoa era? Quem mais? Eu fui me deixando imaginar e então comecei a escrever. Aquilo que você viu, o conteúdo das pastas são apenas inspirações, dali eu tirei personagens que coloquei em situações que me permiti imaginar e viver dentro de minha cabeça. Eu posso te mostrar, tenho uma pasta cheia de rascunhos.

– Você escreve? – ela repetiu com uma voz fria e mecânica, como se apenas parte dela estivesse ali comigo, naquela mesa.

– Sim, posso te mostrar, se você quiser.

– Mas isso é errado também! – ela disse, voltando a me encarar, mas já parecendo um pouco menos perturbada – Você não tem direito de se inspirar ou como queira chamar, no conteúdo de outras pessoas sem autorização. Então ninguém faz ideia de que você copia os arquivos?

– Eu não sei. Eu sinceramente não tenho uma resposta para te dar. Eu só comecei a fazer e é o que eu faço desde então, me distrai. Eu só coleciono, entende?

– Arquivos?

– Histórias, hipóteses, possibilidades. Chame como preferir, não me importa.

Ficaram em silêncio por algum tempo, ambos com o coração disparado e a cabeça fervendo em pensamentos.

– Está errado, Caio, está errado.

Ele se sentiu realmente mal por vê-la tão aflita.

– O que você vai fazer? – finalmente perguntou.

– Eu não sei, sinto que eu preciso contar para alguém, isso tem que parar.

– Olha, por favor, não conta para ninguém, foi bobeira, coisa inocente, de alguém que mora sozinho e estava entediado demais com a própria vida. Mas eu realmente preciso do emprego.

– Eu preciso pensar. Você tem tudo aquilo salvo em outros locais? Ora, que pergunta, é claro que tem! Você tem que prometer que vai deletar tudo e que vai parar. Eu vou pensar e então nós conversamos. Você promete?

– Eu vou parar – concordou.

Desnecessário dizer que eles não comeram, já que não havia tempero capaz de adoçar aquele encontro. Ela se levantou, deixando-o sozinho ali.

Não se encontraram nos dois dias que se seguiram. No terceiro, ele a avistou esperando próximo ao bebedouro que ficava no final de seu corredor. Ela estava estrategicamente posicionada, de forma que ele precisaria passar por ela para ir embora.

– Alessandra – disse, cortês.

– Caio – a moça respondeu, fazendo um aceno com a cabeça.

Por que em alguns momentos é tão difícil encontrar palavras a dizer? Será que é pelo ensurdecedor barulho ecoando dentro de nossas cabeças?

– Podemos conversar? – finalmente perguntou.

– Claro, eu já estou saindo, vou embora de metrô, quer me acompanhar até a estação? – perguntou, afinal sabia que a moça fazia todos os dias o mesmo trajeto que ele.

Entraram e saíram do elevador em silêncio, sem ousarem trocar uma palavra sequer na presença de estranhos. Era curiosa a sensação que percorria e pele dele, tanto quanto o frio no estômago dela. Havia uma conexão, algo agora os unia.

– E então…?

– Eu não sei. Essa história toda tem tirado meu sono! Por mais inocente que seja, ainda me parece errado, entende?

– Entendo.

Ok, não era essa a resposta que ela esperava. Ele nem tentou se explicar, e ela sentiu inveja de sua firmeza.

– Bom, vou perguntar de uma vez e aí você me julga e pronto – ela disse mantendo os olhos fixos no chão à sua frente.

– Quem sou eu para julgar?

– A pessoa mais capacitada, eu diria, já que você tem informações de todo mundo.

Ele riu, gargalhou, na verdade.

– Essa é só uma forma de ver as coisas.

– Nós trabalhamos em uma empresa de seguros, merda! – riu também – e aparentemente ninguém ali está seguro.

– Nós não vendemos senão uma ilusão de segurança. Você, mais do que ninguém, deveria saber.

Ela parou de andar, fazendo-o parar também e virar para encará-la.

– Ok, o que eu queria saber é se você tem informações sobre o Diogo.

– Diogo? Diogo seu chefe?

– O próprio.

– Que tipo de informação? O que você acha que eu faço?

– Me diga você.

– Não muito, não tenho nenhuma cópia oculta dos arquivos dele, se é isso o que você quer saber.

– Hum. tudo bem, obrigada.

– Por quê?

– Nada, esquece que eu perguntei – ela disse e voltou a andar, apressando o passo.

– Ei, espera.

Ele foi atrás dela e segurou em seu braço, fazendo-a parar novamente. E então ela lhe contou. Contou tudo, sobre como o chefe começara a lhe olhar de um jeito diferente, como se ofereceu para “olhar seus números” e ajudá-la nas vendas. As insinuações sobre o cumprimento de metas e possíveis bônus. Até que as coisas evoluíram para beijos melados em sua bochecha para cumprimentá-la, uma mão em seu ombro quando estava sentada e, finalmente, uma apalpada em sua coxa durante a reunião da semana anterior. E, por fim, disse que sabia que ela não era seu primeiro e muito menos seu último alvo.

Ela contou tudo muito séria, era visível seu constrangimento, e Caio sentiu um incômodo enorme em vê-la em tal situação. Como era difícil lidar com garotas.

– Acho que podemos trabalho juntos – disse.

– O quê?

– Eu te ajudo a pegar ele. O cara não pode fazer o que quiser com você, é abuso de poder.

E, com um sorriso de cumplicidade, o pacto foi selado. O plano na verdade foi muito simples. Caio o flagraria e Alessandra teria o prazer de expô-lo perante seus superiores. Ele só precisou criar uma conta de e-mail falsa, se passando por alguém e lhe mandar uma mensagem infestada por malwares. Brincadeira de criança: um link com um suposto vídeo picante tendo como protagonista uma atriz famosa. É claro que ele caiu. E então Alê fez a recomendação dos serviços de Caio, aquele rapaz do TI que usava óculos. Em três dias e o computador já estava em suas mãos. Ele fez uma cópia completa de seus arquivos, só por garantia, mas foi muito fácil de achar material comprometedor ali. Fácil até demais.

O cara tinha uma pasta só com fotos e vídeos dele com outras funcionárias. Caio conseguiu reconhecer vários rostos ali. Algumas fotos sequer mostravam suas faces, mas era o suficiente para qualquer um entender.

O bônus foi uma planilha um tanto quanto pervertida onde o cara guardava informações sobre as mulheres e seus encontros. Havia uma sessão só para classificar e ranquear as garotas. Trabalho minucioso, com tudo separado por cores, marcadores e legendas. Ele ficou feliz por saber que o nome de Alê nunca precisaria ocupar uma posição ali.

No dia seguinte, os dois saíram para almoçar juntos e ele lhe explicou tudo o que encontrara. Ela variou entre nojo, raiva e uma série de palavrões que ele nunca ouvira uma boca feminina proferir antes. Ela era boa naquilo.

Trabalhando juntos, Caio sabia que seu segredo estaria à salvo. Ela demorou alguns dias para tomar uma decisão, pensou em chantagear Diogo para que saísse de seu pé, mas empurrá-lo até a próxima vítima não era algo que ela considerasse solução. Então decidiu entregá-lo. Solicitou uma reunião com a administração da empresa, relatou o assédio que vinha sofrendo e, manteve o pendrive com as fotos e a planilha em sua bolsa, para usar assim que precisasse. A surpresa, entretanto, foi que não precisou. Lhe agradeceram pela informação e disseram que tudo seria averiguado. No dia seguinte outras garotas foram chamadas para reuniões individuais e em pouco tempo a história se espalhou e se confirmou. Um relato deu coragem ao próximo e assim sucessivamente.

*

– Eu não acredito que nós conseguimos! Obrigada – Ela disse praticamente pulando em seus braços na saída, enquanto caminhavam até o metrô.

– Foi você quem conseguiu – ele respondeu, retribuindo de forma desengonçada.

Não estava acostumado a ter mulheres – mulheres de verdade, não as de suas fantasias – se jogando para cima dele.

– Não seja modesto. Foi um trabalho em equipe, só o fato de ter certeza e provas me deu coragem de agir.

– Fico feliz então.

– Mas e você, o que ganhou com isso? Quero dizer, eu consegui tirá-lo do meu pé, mas e você?

– Ganhei um final para minha próxima história – disse, com um sorriso no canto dos lábios.

– Não diga que você está escrevendo sobre mim! – ela reagiu com um leve tapa em seu braço.

– Nunca revelo minhas fontes, você sabe: tudo é apenas inspiração.

– Espera um pouco. Você sabia que isso ia acontecer? Você – ela foi absorvendo as palavras conforme elas entravam em sua mente – você fez de propósito?

Continuaram caminhando em silêncio.

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Sandra

A escola nunca fizera um evento como aquele antes. Os alunos estavam empolgados com a ideia de passar a noite toda acordados na escola, ainda mais sem precisar vestir o uniforme. Raramente tinham a chance de exibirem-se uns aos outros. Algumas meninas investiram em decotes e rendas, enquanto os garotos abusavam das marcas e cores de seus armários.

É claro que Sandra não se sentia bem ali. Ela simplesmente não se encaixava, era desajustada. Não tinha roupas da última moda para desfilar, e seu corpo, bem, ela nem sabia como definir seu corpo, imagine exibi-lo por aí. Mas ela sabia que seria pior se faltasse, não daria esse gostinho a eles, não deixaria sua ausência virar tema de risinhos e piadas, mais risinhos e piadas do que o habitual. Foi assim que ela acabou escolhendo usar o macacão Jeans que encontrou no armário da mãe. Fez uma trança nos cabelos e calçou seus recém lavados all stars brancos.

Conforme chegavam, os alunos eram encaminhados para o auditório por inspetores com cara de sono. Era engraçado vê-los ali àquela hora da noite. A ideia de simular um festival de cinema fora da professora de Artes, ela já havia tentado antes, mas só o novo coordenador apoiou a causa, por achar que poderia ser uma boa oportunidade de integrar os alunos novos. Eles precisavam entender que o Ensino Médio não era apenas sobre provas e cobranças, afinal de contas, os alunos eram adolescentes e precisavam explorar sua vida social. No final, as relações e amizades eram o que todos levavam para além dos muros da escola.

Sandra discordava. Tinha certeza de que jamais olharia para a cara de um dos colegas de sala assim que se formassem. Não falaria novamente com nenhum deles, nem que a obrigassem. Mesmo assim, lá estava ela, sentada ao lado de duas outras garotas que conversavam entre si através de mensagens de celular. Sua vontade era de esmagar os aparelhos no chão, só para que parassem de fazer aqueles apitos irritantes e as duas tivessem que ter uma conversa real, olho no olho. Quando e como foi que o contato se perdeu?

O cheiro de pipoca dominava o ambiente, duas inspetoras distribuíam alegremente saquinhos de pipoca aos alunos. Aos poucos o auditório se encheu e os anfitriões da noite subiram ao palco para agradecer a presença de todos e falarem sobre a importância do cinema como forma expressão artística. Definitivamente, coordenadores frustrados não deveriam poder falar em um microfone para um auditório cheio de adolescentes, ele se embaraçava cada vez mais. Olivia tentou fazer valer seu diploma de história da arte, mas não era muito melhor do que ele. E então Sandra se distraiu ao começar a se perguntar se aquilo realmente era arte ou se só mais uma coisa deturpada em produto midiático.

Só voltou a prestar atenção quando as luzes se apagaram e o primeiro filme começou, enchendo a sala com luzes coloridas e uma trilha sonora de suspense. Logo a imagem de uma menina andando de bicicleta em meio à rodovia surgiu na tela. Sandra se ajeitou na poltrona e olhou para o relógio, mas ainda faltavam muitas horas até ela poder sair dali.

Lá pela quarta ou quinta cena do filme, Sandra começou a se distrair, olhando para os lados e observando como cada pessoa reagia ao filme, além de notar quem, assim como ela, não conseguia manter os olhos na tela. Foi então que reparou em Juliana. Três fileiras à frente, duas cadeiras à direita. O perfil da garota era esporadicamente iluminado pelas luzes do filme, sua risada era doce e ela jogava a cabeça e os ombros para trás enquanto ria, era quase imperceptível, a menos que você estivesse prestando atenção. Apesar de não estar olhando diretamente para seu rosto, Sandra se lembrava também que a garota tinha um dente ligeiramente torto que ficava a mostra quando ela sorria, pois ela era daquelas pessoas que sorria com a boca aberta, espontânea e descontraída, o extremo oposto dela mesma. Talvez por isso que suas características lhe fossem tão chamativas.

No meio do filme, a apresentação foi interrompida para um breve intervalo, para que os alunos pudessem ir ao banheiro ou reabastecer seus saquinhos de pipoca. Ela se levantou, apenas para sair de perto de suas irritantes vizinhas que ainda conversavam pelo celular. Deu uma volta pela sala e se sentou um pouco mais para trás, sozinha.

Fechou os olhos, desejando que isso acelerasse o tempo e diminuísse a distância entre ela e a saída. Sentia sono.

– Com licença, esse lugar está ocupado?

A voz doce de Juliana entrou em seus ouvidos com tamanha surpresa que, apesar de abrir a boca, não conseguiu emitir nenhum som, então apenas balançou a cabeça, em uma negativa.

– Que ótimo. Vou ficar por aqui então. Toda aquela luz da primeira fileira já estava me deixando com dor de cabeça. Aqui no escurinho é melhor.

Sentia o cheiro do perfume floral da garota bem perto dela, o sono foi embora com a corrente elétrica que subitamente pareceu percorrer seu corpo e, de repente, ela estava mais desperta e consciente do que antes.

– Pipoca? – Juliana ofereceu.

– Ah, obrigada – aceitou, pegando timidamente um punhado e colocando em suas mãos.

Sandra foi comendo as pipocas da colega uma a uma, saboreando devagar. E feliz por ter algo para fazer e se distrair.

A sessão voltou a rolar e elas ficaram em silêncio, a garota lhe estendeu o pacote novamente, e assim elas foram dividindo aquele momento, grão a grão. Mais de uma vez seus dedos se encontraram dentro do apertado saco de papel. Sandra se arrepiou com o toque áspero dos dedos sujos de sal de Juliana. Ela pediu desculpas, num sussurro, mas a outra apenas riu, balançando a cabeça e levando a mão à boca para lamber as pontas dos dedos. Em seguida passou a mão pela calça jeans e deixou-a ali, pousada sobre sua coxa.

Sandra sentia o calor subindo por seu corpo, aquele canto da sala estava tão abafado! Com um movimento lento, quase ensaiado, se aproximou mais da cadeira ao lado. Mesmo sabendo que aquela noite não passava de uma fantasia, não havia motivos para não aproveitá-la. Uma garota como Juliana jamais olharia para ela em dias comuns, ao menos nunca olhara antes. Enquanto ela reparava na colega desde a sexta série, quando seus corpos começaram a mudar. Notou como Juliana estava mais alta na volta das férias de verão, como se tivesse aproveitado os dias de folga para esticar. Reparou quando as ondulações de seu cabelo foram alisadas e queimadas por uma chapinha. E lembrava-se de quando os colegas começaram a chamá-la apenas de Juli, como se fossem muito íntimos para dizer seu nome todo.

Por algum motivo, Sandra parecia conhecer mais os traços das outras garotas do que os seus próprios. Talvez sua insegurança fosse tão intensa que ela costumava gastar tempo demais reparando e se comparando com outras pessoas. Elas eram como um espelho e devia ser por isso que ela sentia desejá-las. Aquilo era normal, não era? Era o que ela se perguntava.

Teve seus pensamentos interrompidos quando a voz rouca de Juliana chamou seu nome em um sussurro. Ela lhe pedia passagem para se levantar e sair da estreita fileira de cadeiras improvisada. Sandra se encolheu, trazendo as pernas para mais perto de seu assento e ficou olhando enquanto a outra passava, não conseguindo evitar um arrepio no joelho quando suas pernas esbarraram uma na outra.

Dois longos minutos se passaram, ela sabia, pois estivera encarando o relógio em seu pulso. Mesmo sabendo que aquilo era errado, irracional, indecente, se levantou, tentando não fazer barulho, e seguiu pelo mesmo corredor, indo parar na porta do banheiro feminino.

Entrou e tentou não encarar a garota, que se olhava no espelho enquanto retocava o batom vermelho dos lábios. Seus olhares se cruzaram por um segundo, antes que Sandra conseguisse desviar e entrar em uma cabine. Ela estava ainda mais bonita com os lábios pintados!

Sandra esperou alguns segundos, até sentir o rubor de sua face amenizar. Apertou a descarga antes de abrir a porta, como uma tentativa de justificar seu tempo ali, e então saiu para lavar as mãos, aproveitando para jogar um pouco de água fria no rosto. Olhou ao redor pelo reflexo do espelho e, num misto de alívio e frustração, percebeu que estava sozinha.

Rumava para a saída quando a viu parada na última cabine, a sua espera. Juliana pegou em seu braço, sentiu os dedos finos e de unhas compridas da garota se fechando em torno de seu pulso e puxando-a para dentro.

Não houve tempo para palavras ou explicações. Até mesmo a surpresa ficou entalada na garganta ao ser calada com um beijo. Um beijo roubado e aguardado, quente, com um leve gosto de pipoca. Aquele beijo adolescente, que tem um sorriso no meio. O único tipo que Sandra conhecera até ali, em seus meros dezessete anos de vida. Um beijo que não durou tanto quanto podia ter durado. Seu término precoce talvez se devesse à expectativa de poderem se olhar, ou então ao medo de serem pegas ali.

Nenhuma das duas ousou dizer a primeira palavra. Sandra assistiu em câmera lenta enquanto Juliana passava um dedo sobre seus lábios, limpando o batom que havia borrado e depois quando se virou e saiu do banheiro, ainda em silêncio. Sozinha, saiu da cabine e foi até o espelho, apoiou-se na pia e levantou o rosto, tomando coragem de encarar-se e ver que o batom borrado também estava ali, sujando seus lábios e testemunhando o que acabara de acontecer. Mesmo sem querer, passou os dedos, limpando as marcas vermelhas e apagando os vestígios de Juli.

Voltou, com as pernas bambas para seu lugar. As duas ficaram sentadas, lado a lado, dividindo calor e um segredo. Agora a garota estava ainda mais consciente da presença e proximidade da outra, sentindo seu cheiro e vendo seu reflexo com o canto dos olhos. Sandra não era mais capaz de distinguir quem eram os atores que desfilavam na trama da tela, porém achava que seria capaz de distinguir e reconhecer cada traço daquele belo rosto que ainda há pouco estivera tão próximo do seu.

Ela não sabia o que aconteceria na segunda-feira. Voltariam a agir como estranhas? Cada uma em sua pequena tribo? Juliana voltaria a ignorar sua existência? Como em um sonho, era preciso aproveitar aquela noite. Assim que a luz da tela se apagou e os créditos começaram a rolar, lentamente e em letras miúdas, Sandra se levantou e saiu da sala, não foi preciso se virar para saber que estava sendo seguida.