Uma Última Vez

Me sinto no direito de dizer que nós crescemos juntas. Quando pequena, brinquei em seu quintal e corri por seus corredores. Fiz lição com o caderno apoiado embaixo do balcão e brinquei de bonecas na mesa do refeitório. Passava tanto tempo lá que até fui eleita a responsável pelo café, arma poderosa para combater aquele soninho do turno da tarde.

Você passou por um rompimento de sociedade e eu de família. Perdemos partes vitais, ficamos sem energia e foi difícil nos reerguermos, eu diria que só conseguimos por estarmos juntas. E foi assim que amadurecemos, sob o mesmo teto.

Já que estamos conversando, preciso te contar que eu nunca me senti muito íntima de ti. Acho que em partes porque passei anos te culpando por tudo o que aconteceu em minha vida, mesmo sabendo que prateleiras de metal não vão embora e mercadorias não tomam decisões. Foi por isso que saí sem olhar para trás, deixei sua familiar rotina para seguir outro caminho, outra profissão, uma de minha escolha.

Com a cabeça cheia de razões, resisti a voltar. Passei dois anos tentando me convencer de que havia espaço para nós duas e que eu podia aprender a conviver contigo, te encaixando em algum canto dentro de mim. Relacionei prós e contras: a família, as finanças e, principalmente, a liberdade de voltar por escolha própria.

Encaramos uma reforma juntas, ou melhor, uma reestruturação, como gosto de chamar. Você foi quebrada, recortada e remodelada, ficando inabitável por alguns meses, até ganhar uma nova forma e ficar irreconhecível. Mas, não há tinta no mundo que apague a história de uma velha parede. Não, o lugar continuou impregnado de lembranças.

Distraída por sua nova beleza e tentando te organizar dentro de mim, não percebi que, apesar da carcaça reluzente, você começava a apodrecer. Um miolo estragado que foi capaz de consumir cada um de nossos recursos, começando pelos seus, até chegar aos meus.

Pouco a pouco, sem notar, sinto que perdi tudo. Fiquei vazia. E ainda é difícil acreditar que, pela primeira vez, já não posso contar com seu apoio. Desta fonte já não sai sequer uma gota. Então me diz o que fazer com essa sede que queima a minha garganta todos os dias?

Larguei tudo para voltar… Parece que há uma força que nos atrai, não é mesmo? Mas só se volta para um barco naufragando quando há algo de muito valor a ser resgatado. Pois bem, meu bem mais precioso estava lá, enterrado nos fundos de um escritório, sem querer arredar o pé, o que nos custou tempo e energia, até que começássemos a nadar todos juntos para a saída. Uma saída que logo se tornou qualquer saída.

Juntas, conseguimos encontrar alguém que acreditou em nós: em seu potencial e em minha história. “Demos sorte”, dizem. Mas nada disso ameniza a dor que senti ao ter que sair uma última vez por suas portas, sabendo que já não seria mais bem-vinda e que nós duas, tão familiares, já não nos pertencíamos mais.

Parece que eu ainda não digeri tudo. Não importa de quantas reuniões de planejamento eu participe ou de quão forte eu finja ser durante o expediente, a verdade é que eu estou perdida, sem saber o que fazer sem você. Outro dia quase não a reconheci, quando te vi do outro lado da praça, transvestida em sua aparência e essência, cheia de mercadorias e vazia de identidade.

Como foi que nós viemos parar aqui? E para onde eu vou agora?

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